quinta-feira, 20 de outubro de 2011

TRABALHAR CANSA

Trabalhar cansa é um filme de monstro. Na trama, a criatura está entre as paredes de um mercadinho de bairro, mas poderia habitar armários ou viver sob as nossas camas. Pois este é um filme sobre instituições cotidianas, pertencentes à um microcosmo que nos é conhecido: a família, a escola, o trabalho, - este último, força motriz do desassossego. São, sobretudo, instituições que se mascaram para camuflar um horror profundo, que se esconde, simbolicamente, entre o concreto, ainda que sem sucesso, pois permite-se revelar aos poucos, seja no âmbito familiar, em que dona-de-casa e empregada ocupam uma relação de predador e presa no momento da contratação; seja no colégio particular que encena uma peça sobre abolição da escravatura sem uma única criança negra no palco; ou na esfera profissional, em que as relações se alternam entre o absurdo e o trágico.
O monstro de Trabalhar cansa atinge em cheio, em maior ou menor grau, estas três esferas. O monstro do filme está relacionado ao material, ao ter. Em suma, ao dinheiro e à falta dele. Ele se desdobra em Helena, dona-de-casa que assume a posição de mantenedora do lar; que de tão fodida, economiza ovos e amaciante, mas faz questão de se colocar em posição superior a da empregada, que no fundo, busca o mesmo que Helena e o marido. Acaba sendo irônico, portanto, o momento em que, ao ver a filha brincar com o dinheiro do caixa, Helena repreende “não brinca com isso, tem muita sujeira”. Afinal, não era justamente esse objeto sujo o causador de tanta angústia e sofrimento, além de responsável pelo despertar da “besta Helena”, da “besta Otávio” e de tantas outras bestas vistas pelo filme? Mas o melhor é renegar as bestas, essas criaturas sombrias que surgem em momentos esparsos, mas continuam ali latentes, escondidas no corpo. O certo é arrancar o monstro da parede e tacar fogo. É o que Helena e Otávio fazem, mas logo depois vemos imagens de São Paulo, infinitas paredes de concreto como aquelas que abrigavam o monstro, numa paleta de cores semelhantes ao cinza sombrio do mercadinho. A impressão é de que inúmeros outros monstros podem sair dali a qualquer momento.
Trabalhar cansa é por si só um filme monstro, objeto estranho num cinema brasileiro que com certa recorrência tem optado pela afetividade e, em decorrência disso, mas nem sempre, pela covardia. É voraz em seu flerte com o cinema de gênero e na utilização de um humor calcado no cinismo. E é um monstro mais que bem-vindo neste mundo de imagens belas, mas de plástico, que têm povoado o cinema nacional.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

sexta-feira, 22 de julho de 2011


A transição da infância/juventude para a idade adulta, o crescer, o descobrir o mundo. São temas que me interessam e sensibilizam com frequência no cinema. Pensando nisso, elaborei uma listinha (e lembrando que elas são sempre parciais, injustas e incompletas) de filmes que de alguma forma toquem essa temática e que me marcaram. Fica aberta à sugestões, acréscimos e discordâncias. (ps: ficou uma lista bem díspare!).

As virgens suicidas, de Sofia Coppola
Clube dos cinco, de John Hughes
Conta comigo, de Rob Reiner
Conto de verão, de Éric Rohmer
Deixa ela entrar, de Tomas Alfredson
E sua mãe também, de Alfónso Cuarón
Elefante, de Gus Van Sant
Gatinhas e gatões, de John Hughes
Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, de Alfónso Cuarón
Harry Potter e as relíquias da morte: parte 1, de David Yates
Meus pequenos amores, de Jean Eustache
Meu primeiro amor, de Howard Zieff
O jardim secreto, de Agnieszka Holland
Paranoid Park, de Gus Van Sant
Pauline na praia, de Éric Rohmer
Ponte para Terabítia, de Gabor Csupo
Uma história de amor sueca, de Roy Andersson
Toy Story 3, de Lee Unkrich

terça-feira, 12 de julho de 2011

X-MEN - PRIMEIRA CLASSE

Observações rápidas sobre “X-Men – Primeira Classe”:

· É um filme infinitamente melhor do que “Wolverine”, a última cria da série, mas não e compara aos episódios dirigidos por Bryan Singer.

· Ainda assim, o diretor Matthew Vaughn faz muito pelo filme, e sua aptidão para misè-en-scène fica bastante clara em cenas como a do primeiro encontro do jovem Erik/Magneto e Sebastian Shaw. Já nas sequências de ação, o trabalho parece ser mais burocrático.

· O roteiro me pareceu bastante perneta: joga ações e não nos apresenta as devidas reações, e vice-versa. O caso mais claro que me vem à mente é a debandada de Angel para o lado de Shaw (que quer destruir a raça humana): okay, há a voz off do guarda que tenta entregar os mutantes, mas isso não é o suficiente para a mudança da personagem. Aliás, o primeiro filme trabalhava melhor com a apresentação e o desenvolvimento dos secundários: o sumário narrativo em que eles surgem é ruim, e com exceção de Mística e Fera, são geralmente figuras bem rasas.

· O elenco principal é um achado: Michael Fassbender dá continuidade à ambiguidade que Ian Mckellen empregava a Magneto, Bacon faz um vilão realmente ameaçador e Jennifer Lawrence dá mais camadas à Mística, que assume o “posto” que era de Vampira (Anna Paquin) no original. Rose Byrne (da série “Damages” e do recente “Sobrenatural”), além de ótima, tem acumulado bons trabalhos no cinema (e espero que ela continue aparecendo de lingerie) e James McAvoy faz do Professor Xavier um personagem de extrema complexidade: é interessante notar como a jovialidade e a energia do personagem vão se esvaindo no decorrer do filme. A relação com Mística é um dado à parte: apesar de generoso e preocupado com a “irmã” (na cena em que a aeronave é atingida tem a ação quase automática de protegê-la com a mão), ele não consegue dar-lhe o conforto que a garota procura, algo que virá com Erik. Aliás, boa parte da força do filme está no envolvimento desses três personagens.

· A direção de arte, não só faz um belo trabalho de reconstituição de época, como desenha ambientes luxuosos (os bastidores do poder durante a Guerra Fria), mas também austéros e áridos. Diria que impressiona mais do que os efeitos especiais, que geralmente são atração maior neste tipo de filme.

por Álvaro André Zeini Cruz

quarta-feira, 6 de julho de 2011

PÂNICO 4

Em “Cópia Fiel”, Abbas Kiarostami faz emergir da mise en scène ficcional uma outra narrativa, também fictícia, que se bifurca dentro da cena cuja locação é um Café. Os recém-apresentados escritor James Miller (William Shimel) e Elle (Juliete Binoche), dona de uma galeria de arte, deixam então a condição de meros conhecidos e encarnam a farsa de uma relação amorosa que se desdobra exponencialmente até o final da trama, quando o simples gesto em frente a um espelho – que remete a um momento anterior – descortina o casamento ilusório que acompanhamos de forma crédula graças à experienciação do pacto emocional imposto pela força das atuações na encenação desta relação cotidiana e universal.
A temática de “Cópia Fiel” emana deste jogo que se desdobra: original e cópia podem estabelecer uma experiênciação estética equivalente em suas forças? A farsa criada não nos proporciona a obtenção de um pacto tão, ou mais forte que a “realidade” (entende-se por realidade, o ponto de partida da trama)? Existe a tal cópia fiel e, se sim, qual o seu valor? Curiosamente, são questões que brotam do cinema artístico de Kierostami e vão ao encontro do cinema de gênero repensado por Wes Craven em “Pânico 4”.
Em “Pânico 4”, a questão do espelhamento e da intermediação são constantes e, num mundo onde as imagens se multiplicam em megabytes, torna-se difícil distinguir real e imaginário, verdadeiro e falso. Isso está na sequêncida do prólogo, em que cada cena se revela um simulacro, até o momento em que enfim chegamos à esfera do “real” – o universo concreto onde se desencadeia a trama. Está também na própria diegese fílmica: Ghostface está nas máscaras “comemorativas” do aniversário do massacre; está nos aplicativos dos celulares, que simulam a voz do assassino de Woodsboro – muitos querem ser Ghostface. “A tragédia de uma geração é a piada da outra”, bem pontua um personagem. Mas há aqueles que querem ser Sidney Prescott (Neve Campbell), a garota que sobreviveu, e a busca por este espelhamento é a força que move o filme. Encontra sua quase plenitude no plano abaixo.

Na imagem, Sidney, à esquerda do quadro, e Trudie (Shenae Grimes), sobrinha de Sidney, à direita, num posicionamento idêntico. Obcecada pelo papel de vítima de Sidney, Trudie age todo o filme para que este momento ocorra, e não à toa se coloca no espaço em posição reflexa, algo que é potencializado pelo setup da câmera, que capta os corpos de maneira a corroborar este espelhamento. Há, no entanto, um item que impede a imagem de alcançar a simetria bilateral perfeita: a linha diagonal que corta o chão. Pois sendo a imagem constituída por forma (os corpos) e contraste (o chão), e levando em consideração que esses elementos afetam um ao outro diretamente, a tal linha não deveria estar presente, ou estar ao menos colocada na vertical, distribuindo o espaço em igualdade entre as personagens. Aqui, no entanto, ela não só gera o desequilíbrio da composição, como ainda emoldura Sidney acuada no canto esquerdo do quadro, ainda na posição de vítima, lugar que Trudie almejara desde o princípio, mas sem jamais alcançar: ela continua no papel do algoz e a imagem só reitera isso.
Resta revelar que Trudie, em seu plano para assumir o papel da tia, planejara fazer um remake dos acontecimentos do filme original – uma cópia fiel, só que com ela ao invés de Sidney. O contexto/contraste, no entanto, agora é outro: este não é o “Pânico” de 1996, nem a Woodsboro de hoje é a mesma de outrora, pois houve ao menos um deslocamento de tempo (e com isso transformações sociais, tecnológicas, etc). Se no original a ideia era repensar o cinema de gênero sem sair deste mesmo escopo, neste quarto episódio, é preciso realocá-lo num mundo em que as imagens, de tão voláteis, perderam o impacto (o serial killer que virou piada), bem como os referenciais, que seguem caminhos questionáveis diante desse bombardeio de atos e fatos banalizados, dessa individualização que leva ao desespero por aquilo que, numa visão Lacaniana, é o que todos nós desejamos: sermos desejados (e é o que Trudie quer). Pois “Pânico 4” está situado num tempo de vítimas-celebridades instântaneas, de informações fragmentadas e de uma relevância maior para com imagens dissumuladas ou abjetas, e para Wes Craven, isso afeta diretamente a questão do espelhamento, da referenciação. Ironicamente, seu filme segue os mesmos passos do original, utiliza-se dos mesmos marcadores conhecidos já em 1996. No fundo, no fundo, é uma cópia, um remake, mas tem vida própria, não é mero simulacro: tem seu valor.
por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Filmes vistos (ou revistos) no período de 01/01/2011 a 31/05/2011 e suas devidas cotações (sempre momentâneas e mutáveis):

1. Ônibus 174, de José Padilha e Felipe Lacerda ****

2. Tron, de Joseph Kosinski ***

3. Se beber, não case, de Todd Phillips ****

4. Além da vida, de Clint Eastwood *****

5. Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock *****

6. Se meu apartamento falasse, de Billy Wilder *****

7. Desejo e Obsessão, de Claire Denis ****

8. Avatar, de James Cameron *****

9. O Mágico, de Sylvain Chomet **

10. É Proibido Fumar, de Ana Muyarlet ***

11. Enrolados, de Byron Howard e Nathan Greno ****

12. Mary Poppins, de Robert Stevenson ***

13. Filme Socialismo, de Jean Luc Godard ***

14. Era uma vez no Oeste, de Sérgio Leone *****

15. Ponyo - uma amizade que veio do mar, de Hayao Miyazaki *****

16. Cisne Negro, de Darren Aronofsky ****

17. Sempre Bela, de Manoel de Oliveira ****

18. Tio Boonme, de Apichatpong Weerasethakul ****

19. Alice não mora mais aqui, de Martin Scorsese ***

20. Felizes Juntos, de Wong Kar-Wai ***

22. Deixe-me entrar, de Matt Reeves *

23. O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto ***

24. Um lugar qualquer, de Sophia Coppola ****

25. A Outra, de Woody Allen ***

26. Eles vivem, de John Carpenter *****

27. Conto de Verão, de Eric Rohmer *****

28. Conto de Inverno, de Eric Rohmer ***

29. Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky **

30. Os embalos de sábado à noite, de John Badham ***

31. Inverno da Alma, de Debra Granik ****

32. O Raio Verde, de Eric Rohmer ****

33. O Segredo dos seus Olhos, de Juan José Campenella ****

34. Cidade dos Amaldiçoados, de John Carpenter ****

35. Garota da Vitrine, de Anand Tucker ****

36. Frenesi, de Alfred Hitchcock *****

37. Cortina Rasgada, de Alfred Hitchcock ***

38. 127 horas, de Danny Boyle **

39. Homem-Aranha 2, de Sam Raimi *****

40. O Discurso do Rei, de Tom Rooper ***

41. Alice nas cidades, de Wim Wenders ****

42. Jejum do Amor, de Howard Hawks *****

43. 33, de Kiko Goifman ***

44. A Noite dos Mortos Vivos, de Tom Savini ****

45. Conto de Primavera, de Eric Rohmer ****

46. Bravura Indômita, de Joel e Ethan Cohen ****

47. Os Caça-Fantasmas, de Ivan Reitman ***

48. Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho ***

49. Natimorto, de Paulo Machline ****

50. Namorados para sempre, de Derek Cianfrance ****

51. Titicut Follies, de Frederick Wiseman ***

52. Contatos Imediatos de Terceiro Grau, de Steven Spielberg ****

53. Cópia Fiel, de Abbas Kierostami *****

54. Mistérios e Paixões, de David Cronenberg ***

55. Santiago, de João Moreira Salles ****

56. A eternidade e um dia, de Theo Angelopoulos ****

57. Onde começa o inferno, de Howard Hawks *****

58. Esposa de Mentirinha, de Dennis Dugan ***

59. Alta Ansiedade, de Mel Brooks ****

60. Farrapo Humano, de Billy Wilder ****

61. A Fortaleza, de Arch Nicholson *****

62. Pequenos Guerreiros, de Joe Dante *****

63. Viagem Insólita, de Joe Dante ****

64. Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood *****

65. Lolita, de Stanley Kubrick *****

66. A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz *****

67. Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi ****

68. Pauline na praia, de Eric Rohmer *****

69. Assassinos, de Don Siegel ****

70. O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog ***

71. Touro Indomável, de Martin Scorsese *****

72. Bruna Surfistinha, de Marcus Baldini **

73. Amantes Crucificados, de Kenji Mizoguchi ***

74. Rio, de Carlos Saldanha **

75. Thor, de Kenneth Branagh *

76. Justiça, de Maria Augusta Ramos ****

77. Pânico 4, de Wes Craven ****

78. Tarnation, de Jonathan Caouette *****

79. Paisagem na Neblina, de Theo Angelopoulos *****

80. Marcha da vida, de Jessica Sanders ****

81. As Pontes de Madison, de Clint Eastwood ****

82. O Intendente Sansho, de Kenji Mizoguchi ****

83. Cova Rasa, de Danny Boyle ***

84. Sobrenatural, de James Wan ****

85. Millennium Mambo, de Hou Hsiao-Hsien ***

86. O fim e o princípio, de Eduardo Coutinho *****

87. O passo suspenso da cegonha, de Theo Angelopoulos ****

88. Piratas do Caribe 4, de Rob Marshall **

89. Viagem do Balão Vermelho, de Hou Hsiao-Hsien ****

90. O Joelho de Claire, de Éric Rohmer *****


“A planificação (...) é o elemento principal da encenação. É por isso que não gosto do termo realizador, porque, a meu ver, o cinema não é isso, não é a realização. A realização é aquilo que faz a equipa. Mas o nervo da encenação é a planificação. O que é filmar? É saber onde pôr a câmara e saber quanto tempo ela ali ficará. A planificação, para mim, é o mistério”. – Éric Rohmer.

terça-feira, 24 de maio de 2011

"BRUNA SURFISTINHA" E "FALSA LOURA": CINDERELAS DO BRASIL

Em “Falsa Loura”, Carlos Reichenbach conta a história de Silmara, operária da periferia paulistana, cuja alta autoestima é uma qualidade aparente. Interpretada por Rosanne Mulholland, ela é uma das poucas figuras femininas hipnóticas do cinema nacional recente: esbanja sensualidade, simpatia e certa esperteza suburbana, enquanto guarda em segredo a ingenuidade de quem espera encontrar seu príncipe encantado, algo que jamais se concretiza. Isso porque Reichenbach subverte o conto de fadas: em seu âmago, Silmara está certa de que é Cinderela; o filme, no entanto, se constrói para comprovar a vocação da moça para gata borralheira. É, justamente, o oposto do que se vê em “Bruna Surfistinha”.

Raquel Pacheco (ou Bruna) e Silmara, no entanto, começam em pontos equivalentes – a primeira é filha adotiva de um casal de classe média-alta; a outra, uma moradora da periferia, mas ambas vêm de um ambiente que, de alguma forma, lhes foi/é hostil. Os sentimentos turbulentos em torno da figura paterna – o pai de Bruna é de uma indiferença inexplicável; o de Silmara um ex-incendiário alcoólatra – também tornam-se um ponto de convergência entre elas. Por fim, ambas conhecem o poder de sedução que têm para com os homens, embora o usem de formas distintas, e por isso, as trajetórias até aqui semelhantes, passam aqui a se distinguir.

Pois Silmara esconde a mais arquetípica mocinha em busca do verdadeiro amor: o príncipe encantado que em “Falsa Loura” traduz-se no vocalista da banda ou no galã de televisão. Bruna não acredita em príncipes, ela inclusive afirma isso a certa altura. Talvez porque a projeção que mais se aproxime dessa ideia de figura salvadora, esteja no pai, líder de um núcleo familiar que a acolheu de maneira física e material, mas não emocional (exceção da mãe). De qualquer forma, o filme lança isso tudo de forma bastante superficial, embora bem amarrada pelo roteiro. Adentramos um cotidiano familiar perceptivelmente incômodo, mas cujas razões somos incapazes de compreender (embora a voz over tente a todo custo explicar).

Do apartamento de classe média pouco acolhedor, vamos ao prostíbulo no coração da cidade – da qual pouco se vê. É o momento tônico de “Bruna Surfistinha”, pois pela primeira vez há a retratação de um cotidiano mais frouxo, natural, ainda que habitado por estereótipos (Drica Moraes faz o possível e impossível para humanizar a cafetina clichê, e o resultado acaba por ser positivo). Há um mínimo de inter-relação entre as personagens e os problemas por elas enfrentados, além de certa espacialização das internas, o que nos leva a alguma mise èn scène além dos quadros fechados, que voltam com força lá pelo desfecho do segundo ato, quando a “recuperação” da personagem enche de pudor o sexo/corpo, limitando Bruna à relação com o blog/computador. Tem-se aí uma questão problemática: num filme que trata do corpo como uma potencial ferramenta para o dinheiro/sucesso, é o rosto que ganha destaque, numa encenação típica do cinema da Globo Filmes (que têm raiz, caule, folhas e frutos calcados na teledramaturgia). O corpo têm alguma importância no início, algo que se estende até o momento do prostíbulo, para logo depois perder espaço em definitivo, com um estrangulamento da mise èn scène na redenção da personagem. Os closes aliados a uma voz over, que já não faz cerimônia na hora de colocar as asserções que bem entender em primeira pessoa, são responsáveis pela moralização de uma personagem que era muito mais complexa ao afirmar que só deixaria a prostituição quando não a desejassem mais. Quando o vício se torna uma força motriz, a personagem se planifica e, de certa forma, Bruna Surfistinha se sacrifica em prol de Raquel Pacheco, pois estamos próximos do desfecho.

Essa fixação que o filme nutre pela própria protagonista torna-se estimulante a princípio, mas limitadora em vários sentidos. O temor por um não restabelecimento de Bruna perante o público faz com que o sexo, e consequentemente tópicos como sexualidade e sensualidade, sejam tratados com excessiva precaução, numa trama em que deveriam estar intrínsecos à personagem, ao protagonismo. O sexo, no entanto, chega a ser desimportante a ponto de elaborar-se em sumários narrativos. Assim, pode-se dizer que Surfistinha personifica, mas também sufoca, seu tema e universo, algo que se reflete de forma visível na encenação e na devoção que o filme tem para protegê-la, não contra um universo diegético, mas contra nós, espectadores.

Esse “bom-mocismo”, no entanto, por mais inibidor que seja, é ao menos mais honesto do que a característica que atinge parte da produção nacional dos últimos anos (“Linha de Passe”, “As Melhores Coisas do Mundo”), e que o crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. descreveu como “publicidade bem intencionada” e “concha segura do olhar”. Há aqui um posicionamento muito claro que estabelece vínculos com a personagem e consequentemente com o mundo que ela habita, mas sobretudo, há uma “falta de covardia” (dizer coragem seria exagero) na tomada dessa postura que pode ser quadrada, mas ao menos não é omissa, e isso já é um pequeno passo.

Entre as atuações, é preciso destacar o trabalho de Débora Secco, que de certa forma tonifica a sensualidade de Bruna Surfistinha – através de um imaginário ligado à própria figura da atriz e suas personagens anteriores – bem como confere certa fragilidade à moça (a postura acuada na cena em que ela vai à casa do colega mal intencionado); e Cássio Gabus Mendes, que como um cliente apaixonado, consegue estabelecer a tridimensionalidade do personagem através de um jogo de motivações ambíguas, que se desdobram da ternura quase pueril até o desejo sexual impulsivo e incontrolável, numa única cena.

Vale pensar, por fim, em várias das externas de Bruna pela cidade: o quadro fechadíssimo no rosto, as luzes quase sempre em desfoque ao fundo. Sínteses daquilo que se vê no filme: uma personagem capaz de atrair para si todos os olhares, permitindo que muito pouco, além dela própria, seja observado. Pois atrás da face próxima à câmera, um mundo veloz, com pouca profundidade, e que cujas imagens são difíceis de discernir – algo que pode ser sintomático à trajetória de sucesso e fracasso de Raquel Pacheco e seu blog, muito típica ao nosso tempo, aliás – se faz presente, impedindo o filme de avançar ao afetar cada microestrutura da narrativa, que parece se deslumbrar com Bruna a ponto apenas de protegê-la e emoldurá-la. Em “Falsa Loura”, o mundo dá rasteiras recorrentes em Silmara, a moça que pensa ser “princesa”, levando-a sempre de volta à estaca zero. Reichenbach pega a estrutura de uma história conhecida e a põe às avessas. Em “Bruna Surfistinha”, a personagem-título adentra na realidade da prostituição consciente de que não existem contos de fadas, mas o filme insiste em continuar a sê-lo. A “princesa” aqui busca o mundo-cão como um fim, mas o filme o assimila como um meio, como simples caminho das pedras que guia à mudança necessária, cuja ausência é inconcebível, já que tudo se encadeia para isso. Diferente de Silmara, personagem que provocava, mas também se deixava influenciar por um todo, Surfistinha têm um filme aos seus pés, pronto para resgatá-la do papel de gata borralheira e alçá-la ao posto de Cinderela.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

quarta-feira, 30 de março de 2011

ALÉM DA VIDA


Numa cena de “Além da Vida”, George (Matt Damon) recebe Melanie (Bryce Dallas), seu interesse amoroso, para jantar em seu apartamento. Trata-se de uma situação bastante incomum para ele, um cara solitário que tem dificuldades de se expor por temer revelar sua mediunidade – algo que ele afirma ser não um dom, mas uma maldição que já lhe trouxera problemas o bastante no passado. Não demora, porém, para que Melanie descubra tal segredo e, embora conheça o desfecho da noite, George cede aos pedidos insistentes da moça por um contato. É da janela do apartamento em São Francisco que George vê Melanie se afastar para nunca mais voltar a vê-lo. Ele sabe que seu poder exerce fascínio e temor; atrai, da mesma maneira que distancia, e por isso, para ele, naquele momento, tal capacidade é sim uma maldição. É também de uma janela, só que de um hotel em Londres, que George vê o menino Marcus (George e Frankie McLaren) permanecer prostrado um dia inteiro em frente ao prédio, para fazer uma consulta. Marcus já percorrera diversos “profissionais” – todos charlatões – na tentativa de se comunicar com o irmão gêmeo falecido, com quem tinha uma forta ligação (trama que acompanhamos na estrutura multiplot). No entanto, a persistência do garoto faz com que George abra uma nova exceção e é estabelecendo o contato entre os dois irmãos que a mediunidade deixa o status amaldiçoado de outrora e volta a se tornar algo positivo para o personagem. É o clímax do filme de Clint Eastwood, mas para acessá-lo, é essencial compreender a relação, o algo em comum entre esses dois e uma terceira personagem, a jornalista francesa Marie Lelay (Cécile de France), sobrevivente de um tsunami na Ásia. A ligação George-Marie-Marcus vai muito além desse contato que todos tiveram/têm com o além, pois é algo que está em vida: está na dor. A solidão de George é consequência de um dom que lhe foi imposto e que ele não compreende. Marie, não consegue se reintegrar ao mundo e, em consequência, coloca em xeque sua imagem, credibilidade e profissão – itens que, segundo ela lhe traziam felicidade – para buscar respostas à sua experiência de quase morte. Por fim, Marcus procura algum conforto pela perda do irmão que antes era seu alicerce e proteção. Atribuir a relação entre essas figuras à morte é, no mínimo, simplista, pois o que realmente as relaciona é a incapacidade de retorno a um mundo frugal, limitado, baseado numa sistematização e numa tendência à desumanização, e que, sobretudo, sabem que é efêmero. E é sobre isso que “Além da Vida” vem tratar. Pois estes são tempos de facilidades e inconsistência. Para cada pergunta, o Google tem milhares de respostas, e o que há depois da morte pode ser visto no youtube em opiniões múltiplas, com dogmas acessíveis à todos os gostos. Mas trata-se também de um mundo repleto de barreiras, burocracias, mecanizações, imposições: a editora não pode publicar “Além da Vida” – o livro escrito por Marie – pois é especializada em conteúdo político. A jornalista contra-argumenta (“isso é política”), mas um título como aquele pode por abaixo a credibilidade da empresa, justificam os empresários. Vez ou outra, ela se questiona se teria escapado do tsunami, caso não tivesse saído para comprar presentes para os filhos do chefe e namorado – que, recentemente a trocou por uma substituta no trabalho e na vida amorosa. No fundo, no fundo, a questão que assola Marie (e George e Marcus) é a mesma que estrutura o filme: afinal, que mundo é esse em que as relações são frágeis e voláteis; em que as perguntas são sempre pouco relevantes e as respostas sempre fáceis e prontas; em que o ceticismo, bem como uma religiosidade fanática/panfletária/charlatã, ganham espaço; em que um homem é capaz de explorar o dom - ainda que para isso tenha que reavivar traumas – do próprio irmão, pois a maior valia é sempre o lucro, e não a relação familiar? É justamente este mundo que cerca os protagonistas, que dificulta suas jornadas e que os isola de maneira trágica (ainda que estejamos na esfera do melodrama), pois George, Marie e Marcus têm em sua relação com a morte, uma espécie de epifania, de tomada de cosciência. Não é à toa que, no primeiro encontro entre eles, já no ato final de “Além da Vida”, o reconhecimento é quase iminente. Marie e George trocam um persistente olhar e parece que ambos se reconhecem, sabem que juntos estarão seguros, e ela só não encerra a leitura da qual participa e vai de encontro a ele, pois tem esse autocontrole da maturidade, que por vezes é o que cercea nossa capacidade de crença, entrega e/ou paixão. Mas Marcus, a criança cujos impulsos não encontram regra ou limitação, não hesita em perseguí-lo na busca por respostas verdadeiras; e talvez seja por isso que George aceita recebê-lo, já que ambos, bem como Marie, têm questões relevantes, pertinentes e reais sobre a própria existência e a vida após a morte, que seja lá como for, eles sabem que existe. Eastwood faz críticas sociais, políticas e religiosas num filme cujo tema é, nada mais, nada menos, do que fé, e as faz de forma direta, sem firulas e nem perfumaria, afinal, se há algo inquestionável, é que nenhum de nós está ficando mais jovem – algo que o cineasta sabe bem, ou a morte não estaria tão presente em sua cinematografia recente. Ou seja, não há tempo para bobagens, deve-se ir justo ao ponto, direto ao tema. No desfecho, o encontro entre George e Marie: ele inicialmente inseguro sobre abordá-la ou não, vê numa espécie de premonição, que poderá tocá-la sem acessar seus traumas ou antepassados, acredita nessa imagem, para só então seguir adiante. A crença na possibilidade do simples encontro com uma alma – palavra com decrescente importância e espaço no mundo terrestre, palpável e fulgás ao qual o filme retrata – capaz de compreendê-lo e aceitá-lo, nos faz retornar ao tema. A personificação da fé nestes personagens faz do encontro inevitável, e isso, nenhum roteiro precisa preparar ou explicar: era para acontecer e ponto.
por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

terça-feira, 22 de março de 2011

NATIMORTO


Em “Natimorto”, o universo de Lourenço Mutarelli, que também baseou “O cheiro do ralo”, mantém-se pulsante: relações incomuns, figuras estranhas, ambientes desagradáveis. Aqui, no entanto, a direção é de Paulo Machline, que baseia a interpretação dos atores num anti-naturalismo que se faz presente num mundo comum/inicial, mas que desaparece ao passo que, ironicamente, a relação entre a dupla – vivida por Simone Spoladore e pelo próprio Mutarelli – se torna mais e mais bizarra, revezando sentimentos como dependência e repulsa. Essa alternância, por sinal, está presente no campo imagético, seja pela alteração quase didática, e em momentos, sistemática, das cores que invadem o cenário (o verde e o vermelho dos luminosos; o verde gélido do quadro, que por diversas vezes “sufoca” a personagem de Spoladore – única cujo figurino e a maquiagem possibilitam o uso de cores quentes), seja pelo curioso trabalho de câmera, que capta um todo, para depois fragmentá-lo em detalhes. Pois são justamente os closes, a proximidade, a capacidade de atração dessas personagens, que “desorientam” por vezes a câmera, fazendo com que ela se perca pelo cenário (a boca de Spoladore nos “joga” para o carpete, por exemplo). Não é à toa que, quando a aproximação deixa de ser segura, a câmera se afasta, colocando-se a pino (olhando para as personagens como se fossem ratos de laboratório) ou priorizando planos gerais. Trata-se de um trabalho interessante, justamente por essa mise en scène da loucura, que mesmo num espaço reduzido, abre-se num leque de possibilidades. Pra fechar, me remeteu – ainda que com ressalvas – ao excepcional filme de William Friedkin: o subestimado “Possuídos”.
por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

domingo, 13 de março de 2011


Eles vivem, de John Carpenter – o homem consciente X o que prefere se manter na ignorância. A alienação toma forma/força inesperada e extrema na violenta cena de luta deste belo filme de Carpenter.

Carpenter em cotações:

O Enigma de outro mundo (5/5)
Eles vivem (5/5)
Cidade do amaldiçoados (4/5)
A Bruma assassina (3/5)
Fuga de Nova York (3/5)

“Halloween” e “Christine – o carro assassino” foram vistos na infância e, como a memória não ajudou, preferi deixá-los de fora.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

127 HORAS

Uma incongruência de pontos de vista assola 127 Horas. James Franco, ator, compõe um protagonista cuja tragicidade de uma situação limítrofe faz com que laços emotivos sejam repensados. Danny Boyle, diretor, propõe a trajetória de um jovem que se afasta de um sistema, cujo qual descobre a duras penas, ser impossível viver sem. Histórias semelhantes já foram contadas – de maneiras muito mais honestas, diga-se de passagem. Exemplo: o recente longa de Sean Penn, Na Natureza Selvagem.
Em ambos os filmes, rapazes entre os vinte e poucos repelem o mundo social em prol da natureza – e quanto mais inóspita, melhor! No entanto, há algo simples que distancia a obra de Penn da de Boyle: em Na Natureza Selvagem, Christopher McCandless (Emile Hirsch) se exila devido a ressentimentos e à falta de compreenção que sente por aquela redoma do americano médio, iniciando um caminho de desligamento gradual que vai em direção crescente através dos encontros do protagonista com os Guardiões do Limiar (personagens que impedem momentaneamente a continuidade da jornada do herói). Tratam-se, no entanto, de Guardiões às avessas, que bloqueiam a passagem sem um intuito prejudicial; pelo contrário, são figuras representativas das relações afetivas do passado e daquilo que se pode estar perdendo.
Em 127 Horas, Aaron Ralston (James Franco) parece se isolar por pura indiferença, apatia, mas não há exatamente uma crise, apenas a busca de um cara, cujo ego é um tanto quanto inflado, por um pouco de adrenalina/movimento. Ele se isola do mundo, e é assim que o conhecemos na sequência de abertura: solitário em seu apartamento, numa imagem segmentada, pois a tela dividida em duas, três partes, coloca simultâneamente multidões díspares ao lado da imagem do protagonista.
Aparentemente, trata-se de um conto moral sobre a impossibilidade de sobrevivência sem laços sociais e afetivos, mas a real intenção de Danny Boyle é clara nessa sequência de abertura: vemos pessoas e delas desembocamos no espaço urbano. Daí às marcas McDonalds, Burger King, Taco Bell, KFC, é um pulo. Na esfera imagética, são os luminosos dos fast-foods que ficam para trás quando Aaron parte para a aventura; não os pais, irmãos e namorada. Ele abandona a família, mas, sobretudo, um sistema, e para Boyle, isso sim é condenável.
A história que interessa ao diretor é, portanto, a de um homem que sente falta de sua bebida energética, da água encanada, das facilidades do dia-a-dia, ainda que James Franco tente “boicotá-lo” não intencionalmente. Pois para Franco, Aaron Ralston tem sua redenção na família e isso está na força da interpretação e dos monólogos em frente à câmera. Os flashbacks – recurso que salva Quem Quer Ser um Milionário? da completa imoralidade, justamente por, em sua incompetência, romper com transparência fílmica – aqui de nada adiantam: se há verdade em 127 Horas, ela está calcada no ator, não na mise en scène ou na montagem, publicitárias ao extremo (não seria absurdo se o personagem sacasse um Gatorade na cena da piscina, fazendo um típico comercial da bebida).
Por fim, algo recorrente na carreira de Danny Boyle: a obsessão por figuras que vão ao inferno – ou mergulham na merda (literalmente, no caso de Trainspotting e Quem Quer Ser um Milionário?) - antes de se reerguerem. Trata-se do grande controlador, que faz de seus personagens meros títeres a sua disposição, e ao final, dissimula certo carinho por esses “bonecos” ao propor o happy end através da superação. Antes disso, porém, a violência para com tais personagens já sofreu forte espetacularização, aqui, traduzida na câmera dentro do braço a ser amputado, perfurando músculos, cutucando o osso. Claro, também resultado direto desse “dever” de colocar a câmera em todos os lugares, de fragmentar o filme a ponto de prejudicar a única coisa que aqui vale a pena: a capacidade de entrega do ator.

*ps: quem quiser ver um bom filme de Danny Boyle, procure Sunshine – Alerta Solar.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

UM LUGAR QUALQUER

Um Lugar Qualquer pode ser encarado como uma ode à superfície, afinal é justamente na imagem rasa, desprovida da possibilidade de significações variadas, que se sustenta o filme de Sofia Coppola. Tal característica, no entanto, não deve ser encarada como negativa; ao menos não neste caso específico, já que ela é vital na construção de um mundo onde sentidos e sentimentos estão semi-extintos. Pois se em, por exemplo, À Prova de Morte, um automóvel em alta velocidade é a materialização do perigo e do sadismo (e, mais adiante, da vingança), para a cineasta trata-se apenas de mais um carro em movimento acelerado. Assim são também as garotas seminuas no pole dance: sem qualquer traço de erotismo e sensualidade, são apenas mulheres dançando com o mais voraz esvaziamento que tal imagem pode conter. Dançam mecanicamente, com o som incômodo e potencializado dos corpos raspando sobre a (voltamos à palavra) superfície metálica das barras. Um mundo feito dessas imagens cujas possibilidades foram subtraídas é incapaz de gerar estímulos. Sendo assim, o protagonista Johnny Marco (Stephen Dorphy) não tem ao que responder, algo que é traduzido de forma direta na cena em que o personagem cai no sono durante o sexo.
É o encontro com outra figura solitária que desperta o personagem – e o filme –
dessa pasmaceira emocional. Em determinada cena, Cléo (Ellen Fanning), filha de Johnny, pratica patinação no gelo. Coppola filma o ato de maneira nada especial: detém o olhar da câmera por longos momentos, tal como fizera com as streapers outrora. Mas há o corte para a reação do pai, e em seguida nova persistência na dança daquela personagem, que é livre, inocente, e por vezes, bela. A permanência do plano, que antes parecia mero tédio ou abstração para com aquilo que se via, agora encontra algo ao qual vale à pena prestar atenção, e isso é raro num mundo insonso como aquele.
Não que este mundo superficial irá se modificar, isso não acontece. Mas o feliz encontro entre pai e filha, figuras travadas a ponto de necessitarem de elementos externos (as canções do videogame e do violeiro) para conseguirem alguma expressão sentimental, faz com que um submundo se crie, algo que se traduz imageticamente no zoom out a beira da piscina: o plano começa fechado no momento de veraneio daquela dupla, que já naquele ponto, está fortemente conectada. A abertura, no entanto, revela um ambiente externo, que não interage com os dois personagens, imersos num isolamento conjunto que, para eles já é o suficiente. Ambos criaram uma bolha naquele mundo de plástico alicerçado em imagens frias e cenas-esquetes (seria a incapacidade de uma articulação da vida?). Naquela redoma há algum sentimento, mas há, sobretudo, uma razão, um objetivo, e isso basta para que haja algum estímulo, um espasmo de vida.
por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

IMAGENS DA VIOLÊNCIA EM "O PEQUENO SOLDADO"

Primeiro longa-metragem dirigido por Jean-Luc Godad após Acossado, O Pequeno Soldado se passa nos anos da guerra Argelina, e tem como protagonista Bruno Forestier (Michel Subor), um desertor refugiado em Genebra, que a mando de um partido de extrema esquerda, recebe a missão de eliminar um jornalista político suíço. Ele se apaixona por Véronica Dreyer (Anna Karina), que trabalha para a Frente de Libertação Nacional, partido pelo qual Bruno será preso e torturado, após o fracasso de seu atentado. O cárcere e o suplício do personagem são retratados em cenas que fizeram com que o filme permanecesse sob censura durante três anos na França, e são de especial interesse a este texto não só por conterem e sintetizarem muitas das características presentes na Nouvelle Vague francesa, mas, sobretudo, pelo forte impacto gerado pelo conteúdo das imagens e pela abordagem que Godard dá a elas.
No entanto, antes de adentrar essa temática (a violência presente na imagem cinematográfica) no filme de Godard, é interessante lembrar a polêmica em torno de Kapo, filme dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo, veementemente atacado por Jaques Rivette, crítico da Cahiers du Cinema, revista da qual Godard fazia parte, pela construção dada à cena que traz a morte de uma personagem. Rivette descreve tal cena com grande irritação em seu famoso artigo intitulado “Da Abjeção”:

"Vejam então, em Kapo, o plano em que (Emanuelle) Riva se suicida, jogando-se no arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando o cuidado de inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo". (Cahiers du Cinéma, n° 120)

A abjeção destacada por Rivette, e retomada anos mais tarde por Serge Daney no texto “O travelling de Kapo”, está na abordagem dada por Pontecorvo à violência presente na imagem, e numa esfera maior, à forma como o tema político é tratado. Para Rivette, Pontecorvo submete à trama política às normas dramatúrgicas do Cinema ilusionista, gerando assim uma espetacularização da imagem, e consequentemente, da violência. Insere-se uma camada extra de dramatização numa imagem que deveria ser dramática por si só. O próprio Godard pontua: “o travelling é uma questão de moral”.
A abordagem dada por Godard às imagens de tortura vistas em O Pequeno Soldado é completamente oposta: não há espaço para qualquer tentativa de ilusionismo. A câmera próxima (afinal estamos no espaço do banheiro de um apartamento), e o corte sublinhando o essencial da ação, corroboram na percepção da materialidade da imagem, mas em momento algum modificam a força de seu conteúdo, tentando algum tipo de espetacularização. A imagem é o que é, e a existência dela é importante como registro puro de uma situação real e cotidiana naquele tempo e espaço, ainda que aqui isso se dê no escopo da representação. É o que argumenta João Moreira Salles em seu texto “Imagens em conflito”, que, ainda que num contexto brasileiro, questiona justamente a falta de registros imagéticos da violência, ou de suas vítimas, na mídia, salvos os casos em que a violência é algo extraordinário. O extraordinário colocado no texto de Salles pode estar na esfera do real, mas não está muito distante da espetacularização de Kapo. Já em O Pequeno Soldado, a violência é representada de forma direta e justa ao ponto, tendo ainda a importância de retomar um contexto histórico: a representação dos dois lados do conflito Argelino.
Voltemos à trama. Assim que é capturado, o protagonista é levado a um pequeno apartamento, onde passa por um breve interrogatório. Como ocorrera durante todo o filme, os acontecimentos continuam a ser narrados de forma objetiva em voz over pelo próprio, a quem são apresentadas fotografias de antigos comparsas assassinados por se recusaram a cooperar. A partir daí, a violência surge de forma abrupta e explícita para o público: pouco antes de serem mostradas a Bruno, as fotos surgem em plano fechado na tela. Não se tem, portanto, o ponto de vista do personagem, mas sim a antecipação do que lhe será exposto, e sem qualquer preparo, pois a reação do personagem vem a posteriori, somos apresentados objetivamente aos rostos esfacelados das fotografias, algo que precede ao arremate dessa cena de abertura da sequência, feito por um dos algozes: “Espero que você seja corajoso. Isso será difícil”.
Na continuidade à sequência, o personagem é então arrastado a um banheiro, e desde já, sua narração em primeira pessoa alerta: “A tortura é monótona e difícil. É difícil falar dela, assim, apenas a mencionarei”. A voz over, parte pertencente ao discurso sonoro, estabelece assim desde o princípio uma forma concisa, direta, e porque não dizer, desdramatizada de narrar a violência ao qual o protagonista será submetido, já que seu texto aparece sem a presença de inflexões ou motivações. O restante do discurso sonoro assume um posicionamento semelhante, já que se propõe a uma construção realista em que o único elemento estranho é a música, que surge em momentos pontuais.
O discurso imagético também será calcado no realismo: não há qualquer tipo de fetichização ou estilização da violência nas imagens. No entanto, o “simples” conteúdo delas contrapõem de forma contundente a contenção quase desdramatizada presente na banda sonora e na atuação do ator, relativamente contida diante das situações apresentadas (o próprio personagem explica através da voz over que se obriga a não gritar).
A truculência das torturas mantêm-se, portanto, delimitada ao conteúdo imagético, que por sua vez, apóia-se num realismo calcado numa planificação simples, que se utiliza da flexibilidade da câmera na mão para evitar sucessivos cortes (e a cena em que queimam o prisioneiro é, de certa forma, uma exceção), algo que é bastante frequente também nos momentos de diálogo, mantendo-se assim o foco na ação do quadro. A montagem, por sua vez, utiliza o corte como elemento de dupla função: síntese e sublinhamento. Enquanto tem as mãos expostas ao fogo, vemos o rosto do protagonista em primeiro plano, ao passo que o texto é dado pelo narrador em primeira pessoa. O corte ocorre e nos leva ao mesmo personagem desmaiado horas mais tarde, sendo que, assim que a nova cena inicia, ele é imediatamente despertado por uma ducha de água fria. Suprime-se através do corte a apresentação e qualquer possibilidade de suspensão das cenas: quando cada qual se inicia, já estamos muito próximos de presenciar a violência usada contra o personagem, tendo-se assim retratos concisos e episódicos, mas que mantém grande força e verdade através de seus conteúdos.
Essa breve, porém intensa e polêmica sequência de violência em O Pequeno Soldado, sintetiza inúmeras características da Nouvelle Vague francesa, a começar por essa busca delimitadora por aquilo que é vital à cada sequência, cena e plano, e por fim, ao filme, criando uma estética da economia, da síntese e da essencialidade. Assim, os costumeiros planos e contra-planos usados em diálogos dão lugar ao uso de panorâmicas e chicotes que buscam os personagens, fazendo também uma exploração do espaço cênico; a câmera surge exacerbando sua própria existência, inclusive pela quebra da quarta parede, bem como a montagem, que deixa de ser invisível através dos jump cuts (ainda que esse recurso seja usado aqui de maneira mais moderada do que em Acossado), dos cortes em meio a movimentos desajeitados, das quebras de eixo, da fragmentação e da repetição de planos. Os personagens, por sua vez, deixam a unidade psicológica e emocional do classicismo, para assumirem como principal característica a ambiguidade.
Tem-se assim um Cinema que busca na opacidade, no distanciamento, na denúncia de sua própria existência, sua característica vital. A impossibilidade de uma percepção ilusionista é uma obrigação ética e essencial para com as imagens. Afinal, o chacoalhar da câmera, a visível manipulação do tempo, nos lembram a todo instante de que aquilo é Cinema, e segundo Godard, nesse mesmo filme, Cinema nada mais é do que a verdade vinte e quatro vezes por segundo.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

Bibliografia:
RIVETTE, Jaques. Da abjeção. Cahiers du Cinéma n° 120. Não paginado.
DANEY, Serge. O travelling de Capo.
SALLES, João Moreira. Imagens do real. O Cinema do real.

sábado, 22 de janeiro de 2011

MELHORES DE 2010

Com toda a parcialidade que essas listas exigem, aí vai meu top 16 (!):

1. Toy Story 3, de Lee Unkrich
2. Vício Frenético, de Werner Herzog
3. Vincere, de Marco Bellochio
4. Ponyo, de Hayao Miyazaki
5. A Rede Social, de David Fincher
6. Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1, de David Yates
7. À Prova de Morte, de Quentin Tarantino
8. Ilha do Medo, de Martin Scorsese
9. Tropa de Elite 2, de José Padilha
10. Mother, de John-Ho Bong
11. Invictus, de Clint Eastwood
12. Scott Pilgrim Contra o Mundo, de Edgar Wright
13. Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow
14. Zumbilândia, de Ruben Fleischer
15. Direito de Amar, de Tom Ford
16. Brilho de uma Paixão, de Jane Campion