Quem
é “O Lobo atrás da porta” no filme de Fernando Coimbra? A resposta parece óbvia
conforme a trama se desenrola. Mas será que há apenas um lobo nessa
história?
Bernardo
(Milhem Cortaz) seduz Rosa (Leandra Leal) na cena da estação de trem. Ela, por
sua vez, se deixa seduzir, mas de boba não tem nada – quando descobre que
Bernardo é casado, engendra uma teia no qual envolve não só o amante, mas sua
família. O poder de Rosa se revela na cena em que ela revela questiona Bernardo
sobre o fato de ele ter escondido sua situação conjugal. Ela conduz o diálogo e
Bernardo apenas responde a essa condução, cedendo a seus encantos. Cede a ponto
de dispensar o preservativo.
Rosa
tem consciência de seu poder. Ela então se aproxima de Sílvia (Fabíula
Nascimento), esposa de Bernardo, e da filha do casal. Em três momentos
decisivos dessa aproximação, a câmera segue rente ao ombro e à nuca de Leandra
Leal, como se acompanhasse a invasão da loba no território do rebanho. O ápice
dessa ocupação se dá no momento em que Rosa é convidada por Sílvia a se sentar
à mesa da família para um café – a câmera então recua para outro cômodo
emoldurando a personagem na abertura da porta, enquanto a Sílvia, que já não é
mais senhora de sua casa, some, velada pelas paredes. É Rosa quem reina ali.
Mas
Rosa descobre um predador à altura lá pelo meio da trama, quando a gravidez
indesejada se revela: para “proteger” sua família (tardiamente), Bernardo reage
com violência – arma aquele aborto brutal. Contudo, ele se esquece que Rosa é
reativa: da mesma forma que ao ser seduzida, respondeu com sedução (assumindo, a partir daí, o controle), ao ser violentada, devolve também violência. O retorno de Rosa se
antecipa naquele plano metáfora-síntese do mirante: sozinha, aprisionada, com a
cidade à vista, mas não sem antes se jogar do precipício. Ela se joga: comete o
crime que encerra o filme.
Sim,
Rosa é uma loba, claro, mas não a única, e muito menos a primordial. Chega-se
ao final do filme, mas ao olha-lo em retrocesso, isso se explicita numa forte
cena protagonizada por Cortaz e o delegado vivido por Juliano Cazarré (numa
ótima participação): o delegado interroga Bernardo sobre seu envolvimento com
Rosa e ele assume o caso extraconjugal, mas emenda a justificativa – “sabe como
é, doutor, coisa de homem”. O delegado retruca “não, não sei como é”. O diálogo
se encerra e há um longo olhar entre os dois. É um olhar moral, que persiste e
traz à tona a culpa de Bernardo: não fosse por uma pequena fresta aberta
(aquele xaveco meio torto e constrangedor de homem casado meio sem prática), a
loba não teria entrado. Dali desencadeou-se a tragédia. Estamos, claro, no
terreno do cinema moral.
Leandra
Leal é a maior potência do filme (e acho que desde Rosanne Mulholland em “Falsa
Loura” não via uma personagem assim hipnótica no cinema nacional). Sua Rosa
transita entre a sensualidade de uma Lolita tardia e suburbana e a atitude
doentia de uma fera violentada (ou de alguém que se torna fera por ter sido
violentada). Em determinada cena, ela afirma ao delegado que a garota por ela
sequestrada se encontra em segurança. Descobriremos adiante que se trata de uma
mentira, mas na mente deturpada da protagonista deve fazer certo sentido:
afinal, num mundo em que nem ela, loba cheia de expertise e malícia, conseguiu
sair ilesa, como será capaz de sobreviver o extremo contraponto? A dura
resposta é Sílvia, vítima maior desses dois lobos que circulam pela trama.