sexta-feira, 24 de outubro de 2008

FELIZ NATAL

FELIZ NATAL principia com janelas e cortinas abertas. A câmera já inserida no quarto, cômodo inabitado, futuro “palco” da tragédia que pontua a trama. Jogados nesse cenário, somos susseptíveis às ações que dentro dele se desenrolam. Essa capacidade de se aproximar da ação talvez seja o que diferencie a arte cinematográfica da teatral, muito embora ambas dependam de tais “janelas” e “cortinas”. No filme de Selton Mello, as cortinas abertas sobrepõem a latência aparente do cenário, sugerindo o espetáculo começado. A janela está ali para ser transposta, e a consciência que o diretor tem disso permite que a câmera mantenha uma movimentação própria, uma espécie de livre-arbítrio dentro daquele cenário e em torno de seus personagens, ainda que estes exerçam um magnetismo forte o bastante para impedi-la de afastar-se, fazendo com que ela simplesmente flutue seguindo-os filme afora.
FELIZ NATAL vem na contramão de boa parte da produção nacional. Num cinema entusiasmado por mazelas sociais, o interesse aqui é por um drama íntimo e pessoal, capaz de afetar a esfera familiar. Esfera essa inserida numa camada social que, em raras vezes é representada de forma sincera no cinema nacional – a classe-média brasileira – e no geral, surge apenas quando enlatada pela Globo Filmes. Esse interesse pelo drama individual que atinge o círculo familiar faz com que o filme se aproxime do cinema argentino, e, segundo o próprio diretor, do cinema de Lucrécia Martel. A essência de O PÂNTANO está de fato presente, mas o filme também remete ao dinamarquês FESTA DE FAMÍLIA, de Thomas Vintemberg, que construía os dramas próprios de cada personagem e fazia com que estes culminassem num coletivo. Tal como em FESTA, os conflitos de FELIZ NATAL eclodem à mesa familiar, na mais representativa comemoração dessa pequena instituição chamada família, fazendo com que o principal símbolo desta venha a ruir gradualmente.
Não à toa, a mesa da ceia é aqui atacada por formigas, começando a ruir pelas bordas. O relacionamento entre os personagens sofre de forma parecida, e a aparente felicidade inabalável desmorona aos poucos perante as águas esverdeadas da piscina, as folhas caídas do quintal e o triste abandono da casa, que só ganha vestígios de vida nas festas de final de ano. Não deixa de ser irônico que um dos únicos momentos de real partilha entre dois personagens ocorra em torno de uma mesa. Não da mesa de Natal, mas sim da mesa de bilhar, da mesa de boteco.
FELIZ NATAL inicia seguindo os passos do filho pródigo de volta ao lar na noite de 24 de dezembro. Termina, portanto, acompanhando o retorno dessa jornada, quando o protagonista descobre que para reconstruir a vida é preciso manter-se no exílio. Esse caminho de volta ocorre após a grande explosão emocional do filme. A trilha sonora aumenta, um fluxo de imagens domina a tela e Darlene Glória confirma sua presença como a mais violenta dentro do filme. Tem-se a falsa impressão de que é chegado o clímax. Falsa, pois a história nunca termina antes que as cortinas se fechem e delimitem assim o que será contado. A montagem paralela traz o protagonista de volta à casa, um ferro-velho, representação de sua tragédia pessoal. Outra tragédia tão atroz quanto à daqueles carros contorcidos está prestes a acontecer. O garotinho solitário brinca pela casa vazia, “atropela” o Natal e sobe até o quarto. Lá, a cortina permanece aberta em vão: a trama própria daquele garoto está contada, e nada mais nos será mostrado, mesmo que permaneçamos dentro do quarto. No ferro-velho o oposto ocorre: a cortina é fechada deixando a câmera do lado de fora, permitindo que ela enxergue apenas vultos por detrás do pano. Não há dúvidas de que algo vive dentro daquela janela, mas a partir dali ela foi delimitada e já não nos interessa mais.

*Filme exibido no 3° Festival do Paraná de Cinema. Estréia prevista para novembro.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

LINHA DE PASSE

Dênis, Dário, Dinho e Reginaldo. Quatro irmãos presos a uma movimentação cíclica e constante. Um deles se diferencia dos demais. Reginaldo não compartilha a semelhança de nomes dos irmãos, dorme no sofá, é negro e o único a viver o período da infância. É também o único a estar a favor de algo. Dênis luta contra o desemprego, Dário contra a idade, Dinho contra a delinquência. Reginaldo luta a favor, em busca de alguma coisa. Mais uma vez, a identidade paterna é colocada em xeque. Para Reginaldo, ela é capaz de interferir na dele própria. Essa diferença entre buscas e lutas difere Reginaldo dos outros três. Junto a ele, apenas a mãe, que movimenta-se de forma particular dentro da trama.
Dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, LINHA DE PASSE traz a idéia de um movimento incessante, algo recorrente pelo menos na carreira de Salles, responsável pelos road movies CENTRAL DO BRASIL e DIÁRIOS DE MOTOCICLETA. A busca pela figura do pai, vem de CENTRAL DO BRASIL, onde o garoto Josué (Vinícius de Oliveira) saía Brasil afora à procura dessa identidade perdida. Josué e Reginaldo dividem esse incômodo que os irriquieta, e a viagem de Josué nada mais é do que aquela que Reginaldo inicia em determinado momento do filme. A diferença é que em CENTRAL DO BRASIL essa procura significa uma completa libertação. Em LINHA DE PASSE também, mas uma libertação que se restringe a Reginaldo, sem atingir os demais pergonagens, embora tangencie aos outros três. Para a mãe Cleuza (Sandra Corveloni) a idéia de libertação é utópica e distante. Cleuza está presa ao mesmo ciclo do qual os filhos lutam para se libertar. Reginaldo é o único que consegue, talvez pela fé inocente mantida em sua jornada, talvez por um lance de pura sorte.
Essa idéia cíclica tem efeitos ambíguos no filme de Salles e Thomas. Se por um lado potencializa o filme, mantendo seus personagens fixos às suas tragédias diárias, por outro compromete quando se acovarda e nega a libertação aos outros três irmãos, um rompimento necessário à obra, seja ele para o bem ou para o mal. Se para Reginaldo esse rompimento significa algo novo, o que não necessariamente quer dizer um rumo bom ou feliz à sua história, para os outros, isso até chega a ser sugerido, mas acaba negado, e Dênis, Dário e Dinho ficam presos à Cleuza, a figura materna, e à periferia paulistana. Cenário esse que foge ao lugar comum do morro carioca, mas que não tem seu potencial totalmente explorado.
Em LINHA DE PASSE, os personagens transitam e perambulam por São Paulo, mas jamais a vivem intensamente. A cidade, por sua vez, desperdiça a chance de tornar-se personagem marcante dentro da obra, resignando-se a ser apenas cenário, localidade que abriga a trama. Num filme onde a movimentação se sobressai, a maior cidade do país não tem seu fluxo caótico e constante retratado da maneira que poderia. LINHA DE PASSE perde ao não levar esse movimento a uma camada extra. Ainda assim, tem méritos trazidos por cinco grandes interpretações, que dão vida a figuras magistralmente concebidas no que diz respeito à construção de um personagem.


por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ