quinta-feira, 30 de julho de 2009

FOI APENAS UM SONHO

Na sequência de abertura de Foi Apenas um Sonho, vemos Frank (Leonardo DiCaprio) e April Wheeler (Kate Winslet) em dois momentos contrastantes: a príncípio assistimos ao intenso entusiasmo do instante em que ambos se conhecem, para logo em seguida vermos Frank numa desconfortável posição de marido impotente que vê a esposa se expor ao ridículo. April acaba de se apresentar numa peça fracassada, e o hobbie que deveria lhe proporcionar algum prazer, acaba gerando apenas frustração e constrangimento. Tanto que num dos melhores planos do filme ela está em frente ao espelho tirando a maquiagem, quando o marido (DiCaprio) entra. Ela imediatamente desvia sua atenção para ele como se desejasse um consolo, um afago, algo que não se concretiza. Ao invés disso, Frank Wheeler limita-se a dizer que a peça não foi boa o bastante e o olhar da esposa vai rapidamente do anseio à decepção. Se April é uma mulher frustrada até mesmo em seu escapismo, que dirá em seu papel como mãe e esposa. É em torno dessa frustração do americano médio que gira o filme de Sam Mendes, que marca seu retorno ao subúrbio americano, cenário de seu filme de estreia (e sim, vou contra a corrente, já que gosto de Beleza Americana).
Aliás, as críticas e ironias certas vezes rasas, mas ainda assim dotadas de alguma intenção, de American Beauty, são ao menos honestas se comparadas ao que ocorre aqui. Se a opção de Mendes por se manter distanciado da ação revela-se curiosa, ela cai por terra quando esse distanciamento se confunde com falta de posicionamento. Tomemos como exemplo Mike Nichols, que tem ao menos dois filmes situados num universo semelhante: em Closer sua câmera contenta-se em observar o que está em quadro, enquanto a mise-en-scene apropria-se de ocupar o espaço cênico. Isso de alguma maneira interfere na construção dos personagens, permitindo que eles se tornem multifacetados e revelem suas características de forma fragmentada. Em Apenas um Sonho, tudo o que nos é oferecido do personagem vem da interpretação (e nesse ponto Winslet sai ganhando), já que o que vemos ali, nada mais é do que um recalque do que nos foi dito em Beleza Americana, ou seja, a “revelação” da decadência da família americana e do american way of life. Como se não bastasse, Mendes renuncia ainda a oportunidade que tem de transformar a rua homônima ao filme (o título original é Revolutionary Road) numa espécie de personagem ativa, cárcere do casal protagonista, limitando-se assim à obvia ironia de que ali nenhuma revolução é possível.
Por fim, Kate Winslet revela-se pela segunda vez consecutiva, o elemento de maior consistência de um filme, podendo-se dizer o mesmo de O Leitor, de Stephen Daldry, que ao menos, reconhecia suas limitações. Em seus melhores momentos, Winslet comprova sua versatilidade como atriz ao compor uma atuação introspectiva baseada em pequenos gestos como o olhar descrito no primeiro parágrafo. Em outros, porém, deixa-se influênciar pela interpretação excessivamente marcada de DiCaprio, e ambos se entregam a um overacting quase teatral. São esses os momentos que nos remetem de volta a Nichols, mais especificamente a Quem tem medo de Virgínia Wolf?, com a única diferença de que ali a coisa era toda planejada e o filme tinha ao menos uma personalidade.
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

domingo, 12 de julho de 2009

NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA

“Quando me propus a fazer o meu próximo filme, queria fazer um filme com gente de verdade – uma comédia, mas com gente de verdade. Queria fazer um filme em que eu represente a mim mesmo, a Diane Keaton faça ela mesma e a gente more em Nova York, com os conflitos reais do nosso relacionamento, em vez de uma ideia muito extravagante”.1

Tal fragmento é retirado de uma entrevista concedida por Woody Allen em 1974, três anos antes da estreia de Annie Hall (aqui Noivo neurótico, noiva nervosa). Tratava-se de uma antecipação do próprio filme: uma comédia urbana estrelada por ele e Diane Keaton (na época sua esposa), que trazia não apenas características marcantes de sua carreira (como o humor através de esquetes), como inúmeras referências de teor auto-biográfico. Muito do que se vê em Alvy Singer (o personagem) é deslocado do próprio Allen e tudo é exposto na obra: a paixão de dele por Fellini, sua preferência pelo movimento da metrópole à tranquilidade bucólica, sua carreira como comediante, que começou no stand-up comedy, o infortúnio de ser reconhecido nas ruas (num exemplo de esquete que pouco tem a acrescentar narrativamente a não ser o humor), sua expulsão da New York University, e o próprio relacionamento com Keaton, cujo nome verdadeiro é Diane Hall e o apelido Annie, sendo ela assim o verdadeiro fator desencadeante do filme.
A busca pelo real, por “gente de verdade” está visivelmente inserida em Annie Hall. Segundo Allen, a comédia “exige a realidade”. Isso afeta diretamente sua decupagem. Tomemos uma determinada cena como exemplo: o quadro inicia com Allen e outra personagem se beijando na cama. Desenvolve-se um diálogo a partir daí. Allen se levanta e dá uma volta pelo cômodo, acompanhado pela câmera, deixando a segunda personagem fora de quadro. Ele anda até determinado ponto, para, o diálogo tem continuidade (ela em voz off), ele volta a andar, ela vem de encontro a ele no quadro. A partir daí ela “puxa” a câmera de volta à cama. O quadro é semelhante ao inicial. Allen volta a entrar em quadro, o diálogo termina e a cena se encerra.


Fosse a cena acima decupada de forma tradicional, a utilização de plano e contra-plano seria inevitável: a câmera acompanharia Allen até sua primeira parada e dali iniciaria a clássica montagem de planos entre os dois personagens durante o diálogo. Mas a busca pelo real faz com que o diretor evite o corte e dilate a ação. Segundo ele próprio, numa comédia “...se corta minimamente para não perder o ritmo, sobre o qual tudo repousa”. Mais do que utilizar um conceito rigoroso que prima pela busca por uma realidade, por um não-artifício, o que de certa forma corrobora para uma transparência fílmica (que por sua vez é rompida pelo uso da quebra da quarta parede, por exemplo), Allen propõe que a comédia necessita, além de timing e de uma ecônomia da montagem, também de um espaço cênico para se desenvolver. É, portanto, interessante notar que em sua carreira mais recente, calcada no drama, a partir de Match Point, ele não só deixa de lado essa decupagem/montagem dilatada, como revela-se ainda econômico não na quantidade, mas sim no tamanho dos planos, criando imagens que contenham estritamente aquilo que é essencial para a trama.
Por fim, a realidade não interfere apenas na linguagem e estética do cinema de Woody Allen. Afeta, sobretudo, a construção de seu personagem. Afinal, não seria Alvy Singer apenas uma extensão e recorte do próprio Allen? Não seria esse personagem um interesse comum do diretor, capaz de suprir sua declarada limitação como ator, e que, sobretudo, tem fácil capacidade de deslocamento de uma obra a outra? Ele próprio responde:

“Só posso descrever esse personagem em termos do que conheço: contemporâneo, neurótico, mais orientado para a vida intelectual, perdedor, homenzinho, não lida bem com máquinas, deslocado do mundo – essa merda toda”.2

Intrínsico à cinematografia de Allen está um pessimismo, que se em Annie Hall permanece delimitado à um único personagem, é também exacerbado pelo próprio filme em Match Point, O Sonho de Cassandra e Crimes e Pecados (não à toa, todos calcados em Crime e Castigo, de Dostoiévski). Ao final de Noivo Neurótico, noiva nervosa, Alvy Singer acaba contraposto ao pseudo-otimismo da peça que está dirigindo: “Sabe como sempre tenta fazer tudo sair perfeito em arte, porque na vida real é difícil”.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ