quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

QUEIME DEPOIS DE LER


Em QUEIME DEPOIS DE LER, um casal está de partida enquanto um terceiro personagem aguarda ansioso por adentrar a casa. Inicia-se aí uma seqüência cuja tensão crescente é sempre pontuada pela presença da trilha sonora e pelo paralelismo da edição que aproxima cada vez mais duas dessas figuras: o homem que retorna à casa praticando seu cooper diário e o invasor que encontra-se dentro dela. A partir do momento em que ambos dividem o mesmo espaço, o confronto é adiado pela ação dilatada, criando assim, um verdadeiro jogo de gato e rato dentro da mise-en-scène. Quando o encontro, desde o princípio inevitável, finalmente ocorre, a seqüência atinge um clímax cuja rapidez e a truculência são inesperadas, desconstruindo assim, todo o suspense que fora minuciosamente arquitetado até então. No pós-clímax, um breve respiro, e com ele, a paródia: o personagem estupefato com o que acontecera, perdido em sua própria estupidez, encontra forças para uma desajeitada coreografia vinda do cinema de espionagem, aumentando ainda mais, o absurdo da cena.
A seqüência descrita traz resumida a aura contida nesse novo filme dos Cohen. Aqui, os irmãos exercitam todo seu cinismo e crueldade, características presentes em boa parte de sua cinematografia, através de uma comédia de erros calcada em marcadores que remetem aos cinemas de suspense e espionagem. Habitando a trama com figuras paranóicas e idiotizadas, a dupla de diretores não hesita em criar falsas pistas a fim de enganar o espectador (a mais divertida delas parte de uma invenção criada pelo personagem de George Clooney). QUEIME DEPOIS DE LER, porém, não se limita ao pastiche. Vai além, e ao final, tem-se um divertido mosaico de situações e personagens que buscam (ou fogem) de coisas cotidianas do mundo globalizado: enquanto o intelectualmente limitado personal trainer vivido por Brad Pitt (o grande destaque do elenco numa atuação extremamente física e caricatural) busca tirar proveito de uma informação que cai em mãos erradas, sua colega Linda (Frances McDomard) vê ali uma oportunidade de realizar suas inúmeras cirurgias plásticas, estando assim, apta a encontrar um grande amor. O personagem de Clooney, por sua vez, sempre atrás de sexo casual, passa a fugir a partir do momento em que é detentor de um segredo próprio, acreditando ser vigiado de perto pelo governo americano. Têm-se aí um paralelo interessante entre os personagens de McDomard e Clooney: ambos, cada qual a sua maneira, buscam nada mais, nada menos, do que um singelo contato real, algo que é visivelmente alcançado na cena em que compartilham uma experiência cinematográfica.
Em QUEIME DEPOIS DE LER o fato de uma informação em potencial cair em mãos de pessoas entorpecidas por suas próprias carências é o suficiente para causar certo estrago. Os Cohen, porém, exacerbam esse pessimismo: para eles o simples fato de uma informação ser compartilhada já gera o descontrole. Num mundo onde necessidades precisam ser supridas a todo custo isso acaba sendo potencializado. Não à toa, a única forma de evitar o caos nos é apresentada de forma sucinta, explícita, logo de cara: justamente no título do filme.
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

VICKY CRISTINA BARCELONA

Em VICKY CRISTINA BARCELONA, Woody Allen continua sua minuciosa viagem pelo território europeu, desta vez, porém, deixando a gélida Inglaterra de MATCH POINT, SCOOP e O SONHO DE CASSANDRA para trás, e adentrando terras latinas, mais especificamente, nutrindo-se da cidade título do filme. Barcelona é personagem de inquestionável importância dentro da obra, mas divide espaço com outras duas figuras opostas, contrapostas logo a princípio: as amigas Vicky (Rebeca Hall) e Cristina (Scarlett Johanson), turistas norte-americanas recém-chegadas à cidade espanhola.
Quando Vicky e Cristina surgem na tela a oposição entre ambas trata logo de se fazer visível e uma tarja separa as duas no quadro. A narração presente em todo o filme trata então de apresentar-nos as duas protagonistas: a centrada Vicky e a passional Cristina. O embate pode até não parecer dos mais originais, mas toma proporções inusitadas com o desenrolar do filme, principalmente com o surgimento de Juan Antonio (Javier Barden), um artista que vive um conturbado relacionamento com a ex-exposa Maria Elena (Penélope Cruz). E se a apresentação das duas amigas nos é feita de forma direta, através do olhar onisciente de um narrador desconhecido, a introdução do personagem de Bardén (e consequentemente, da de Cruz) é oposta: vem através de Judy (Patricia Clarkson) que, a pedido de Cristina, faz um breve resumo do que sabe sobre o pintor, e, sobretudo, sobre a relação escandalosa entre ele e a ex-mulher. Assim, acabamos apresentados ao personagem responsável por movimentar as três protagonistas femininas que habitam a obra, ainda que antes mesmo de vê-lo, já que Juan Antonio permanece o tempo todo no extra-quadro e só surge em cena após encerrados os comentários da personagem.
Não demora para que Juan Antonio encante tanto Cristina, quanto Vicky. A diferença é que para Cristina trata-se de uma paixão pré-suposta, já que ele nada mais é do que um ideal daquilo que ela almeja, aliado a imensa vontade de arriscar-se. Talvez por isso, para Juan Antonio, Vicky torne-se, até um determinado momento, mais interessante, sendo a única pessoa capaz de confrontá-lo, mesmo estando perdidamente apaixonada. Não à toa, na cena em que Vicky finalmente rende-se ao charme dele, um jogo de plano e contra-plano ligados através de fusões faz com que ambos disputem o espaço da tela, até que um deles se renda e assim e o jogo acabe.
Essa capacidade de Vicky de rejeitar os próprios sentimentos só deixa de interessar a Juan Antonio quando este descobre em Cristina uma peça chave no relacionamento com Maria Elena. Ela que antes lhe causava apenas certa identificação, passa a ser essencial como ponto de equilíbrio na vida dos dois artistas, iniciando assim um relacionamento a três.
É aí que o contraponto inicial do filme deixa de delimitar-se a Vicky e Cristina, passando a compor o paralelismo feito entre os dois relacionamentos presentes na trama. O casamento perfeito (e incômodo) de Vicky é diretamente confrontado com Maria-Juan-Cristina. Vicky inveja a coragem de Cristina. Cristina, por sua vez, encontra o que quer; ao menos até a inquietude voltar.
Vicky e Cristina terminam tal como começaram: dividindo o quadro. Ambas partiram de um ponto, fizeram movimentos opostos, mas ainda assim seguiram numa mesma direção, numa mesma busca. Convergiram adiante. A tarja já não existe mais. Não que as duas tenham saído totalmente transformadas, mas ao menos elas têm noção daquilo que as separa e sabem das dificuldades de se encontrar um equilíbrio.
Em VICKY CRISTINA BARCELONA, Woody Allen deixa sua câmera a uma certa distância e faz com que a narração transforme-se numa espécie de diário de bordo dessa viagem. Isso faz com que haja um certo distanciamento, sobretudo, entre personagem e espectador. Não que não nos deixemos seduzir por cada um deles, mas vendo a distância os relacionamentos são mais facilmente desnudados e tudo torna-se mais claro. Ao final, Vicky e Cristina tornam-se peças óbvias: figuras cientes de suas próprias tragédias e deficiencias, que conhecem bem uma a outra, e que anseiam por se encontrar, mesmo que não saibam muito bem que caminhos trilhar para isso.


por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ