quarta-feira, 30 de março de 2011

ALÉM DA VIDA


Numa cena de “Além da Vida”, George (Matt Damon) recebe Melanie (Bryce Dallas), seu interesse amoroso, para jantar em seu apartamento. Trata-se de uma situação bastante incomum para ele, um cara solitário que tem dificuldades de se expor por temer revelar sua mediunidade – algo que ele afirma ser não um dom, mas uma maldição que já lhe trouxera problemas o bastante no passado. Não demora, porém, para que Melanie descubra tal segredo e, embora conheça o desfecho da noite, George cede aos pedidos insistentes da moça por um contato. É da janela do apartamento em São Francisco que George vê Melanie se afastar para nunca mais voltar a vê-lo. Ele sabe que seu poder exerce fascínio e temor; atrai, da mesma maneira que distancia, e por isso, para ele, naquele momento, tal capacidade é sim uma maldição. É também de uma janela, só que de um hotel em Londres, que George vê o menino Marcus (George e Frankie McLaren) permanecer prostrado um dia inteiro em frente ao prédio, para fazer uma consulta. Marcus já percorrera diversos “profissionais” – todos charlatões – na tentativa de se comunicar com o irmão gêmeo falecido, com quem tinha uma forta ligação (trama que acompanhamos na estrutura multiplot). No entanto, a persistência do garoto faz com que George abra uma nova exceção e é estabelecendo o contato entre os dois irmãos que a mediunidade deixa o status amaldiçoado de outrora e volta a se tornar algo positivo para o personagem. É o clímax do filme de Clint Eastwood, mas para acessá-lo, é essencial compreender a relação, o algo em comum entre esses dois e uma terceira personagem, a jornalista francesa Marie Lelay (Cécile de France), sobrevivente de um tsunami na Ásia. A ligação George-Marie-Marcus vai muito além desse contato que todos tiveram/têm com o além, pois é algo que está em vida: está na dor. A solidão de George é consequência de um dom que lhe foi imposto e que ele não compreende. Marie, não consegue se reintegrar ao mundo e, em consequência, coloca em xeque sua imagem, credibilidade e profissão – itens que, segundo ela lhe traziam felicidade – para buscar respostas à sua experiência de quase morte. Por fim, Marcus procura algum conforto pela perda do irmão que antes era seu alicerce e proteção. Atribuir a relação entre essas figuras à morte é, no mínimo, simplista, pois o que realmente as relaciona é a incapacidade de retorno a um mundo frugal, limitado, baseado numa sistematização e numa tendência à desumanização, e que, sobretudo, sabem que é efêmero. E é sobre isso que “Além da Vida” vem tratar. Pois estes são tempos de facilidades e inconsistência. Para cada pergunta, o Google tem milhares de respostas, e o que há depois da morte pode ser visto no youtube em opiniões múltiplas, com dogmas acessíveis à todos os gostos. Mas trata-se também de um mundo repleto de barreiras, burocracias, mecanizações, imposições: a editora não pode publicar “Além da Vida” – o livro escrito por Marie – pois é especializada em conteúdo político. A jornalista contra-argumenta (“isso é política”), mas um título como aquele pode por abaixo a credibilidade da empresa, justificam os empresários. Vez ou outra, ela se questiona se teria escapado do tsunami, caso não tivesse saído para comprar presentes para os filhos do chefe e namorado – que, recentemente a trocou por uma substituta no trabalho e na vida amorosa. No fundo, no fundo, a questão que assola Marie (e George e Marcus) é a mesma que estrutura o filme: afinal, que mundo é esse em que as relações são frágeis e voláteis; em que as perguntas são sempre pouco relevantes e as respostas sempre fáceis e prontas; em que o ceticismo, bem como uma religiosidade fanática/panfletária/charlatã, ganham espaço; em que um homem é capaz de explorar o dom - ainda que para isso tenha que reavivar traumas – do próprio irmão, pois a maior valia é sempre o lucro, e não a relação familiar? É justamente este mundo que cerca os protagonistas, que dificulta suas jornadas e que os isola de maneira trágica (ainda que estejamos na esfera do melodrama), pois George, Marie e Marcus têm em sua relação com a morte, uma espécie de epifania, de tomada de cosciência. Não é à toa que, no primeiro encontro entre eles, já no ato final de “Além da Vida”, o reconhecimento é quase iminente. Marie e George trocam um persistente olhar e parece que ambos se reconhecem, sabem que juntos estarão seguros, e ela só não encerra a leitura da qual participa e vai de encontro a ele, pois tem esse autocontrole da maturidade, que por vezes é o que cercea nossa capacidade de crença, entrega e/ou paixão. Mas Marcus, a criança cujos impulsos não encontram regra ou limitação, não hesita em perseguí-lo na busca por respostas verdadeiras; e talvez seja por isso que George aceita recebê-lo, já que ambos, bem como Marie, têm questões relevantes, pertinentes e reais sobre a própria existência e a vida após a morte, que seja lá como for, eles sabem que existe. Eastwood faz críticas sociais, políticas e religiosas num filme cujo tema é, nada mais, nada menos, do que fé, e as faz de forma direta, sem firulas e nem perfumaria, afinal, se há algo inquestionável, é que nenhum de nós está ficando mais jovem – algo que o cineasta sabe bem, ou a morte não estaria tão presente em sua cinematografia recente. Ou seja, não há tempo para bobagens, deve-se ir justo ao ponto, direto ao tema. No desfecho, o encontro entre George e Marie: ele inicialmente inseguro sobre abordá-la ou não, vê numa espécie de premonição, que poderá tocá-la sem acessar seus traumas ou antepassados, acredita nessa imagem, para só então seguir adiante. A crença na possibilidade do simples encontro com uma alma – palavra com decrescente importância e espaço no mundo terrestre, palpável e fulgás ao qual o filme retrata – capaz de compreendê-lo e aceitá-lo, nos faz retornar ao tema. A personificação da fé nestes personagens faz do encontro inevitável, e isso, nenhum roteiro precisa preparar ou explicar: era para acontecer e ponto.
por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

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