sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

IMAGENS DA VIOLÊNCIA EM "O PEQUENO SOLDADO"

Primeiro longa-metragem dirigido por Jean-Luc Godad após Acossado, O Pequeno Soldado se passa nos anos da guerra Argelina, e tem como protagonista Bruno Forestier (Michel Subor), um desertor refugiado em Genebra, que a mando de um partido de extrema esquerda, recebe a missão de eliminar um jornalista político suíço. Ele se apaixona por Véronica Dreyer (Anna Karina), que trabalha para a Frente de Libertação Nacional, partido pelo qual Bruno será preso e torturado, após o fracasso de seu atentado. O cárcere e o suplício do personagem são retratados em cenas que fizeram com que o filme permanecesse sob censura durante três anos na França, e são de especial interesse a este texto não só por conterem e sintetizarem muitas das características presentes na Nouvelle Vague francesa, mas, sobretudo, pelo forte impacto gerado pelo conteúdo das imagens e pela abordagem que Godard dá a elas.
No entanto, antes de adentrar essa temática (a violência presente na imagem cinematográfica) no filme de Godard, é interessante lembrar a polêmica em torno de Kapo, filme dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo, veementemente atacado por Jaques Rivette, crítico da Cahiers du Cinema, revista da qual Godard fazia parte, pela construção dada à cena que traz a morte de uma personagem. Rivette descreve tal cena com grande irritação em seu famoso artigo intitulado “Da Abjeção”:

"Vejam então, em Kapo, o plano em que (Emanuelle) Riva se suicida, jogando-se no arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando o cuidado de inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo". (Cahiers du Cinéma, n° 120)

A abjeção destacada por Rivette, e retomada anos mais tarde por Serge Daney no texto “O travelling de Kapo”, está na abordagem dada por Pontecorvo à violência presente na imagem, e numa esfera maior, à forma como o tema político é tratado. Para Rivette, Pontecorvo submete à trama política às normas dramatúrgicas do Cinema ilusionista, gerando assim uma espetacularização da imagem, e consequentemente, da violência. Insere-se uma camada extra de dramatização numa imagem que deveria ser dramática por si só. O próprio Godard pontua: “o travelling é uma questão de moral”.
A abordagem dada por Godard às imagens de tortura vistas em O Pequeno Soldado é completamente oposta: não há espaço para qualquer tentativa de ilusionismo. A câmera próxima (afinal estamos no espaço do banheiro de um apartamento), e o corte sublinhando o essencial da ação, corroboram na percepção da materialidade da imagem, mas em momento algum modificam a força de seu conteúdo, tentando algum tipo de espetacularização. A imagem é o que é, e a existência dela é importante como registro puro de uma situação real e cotidiana naquele tempo e espaço, ainda que aqui isso se dê no escopo da representação. É o que argumenta João Moreira Salles em seu texto “Imagens em conflito”, que, ainda que num contexto brasileiro, questiona justamente a falta de registros imagéticos da violência, ou de suas vítimas, na mídia, salvos os casos em que a violência é algo extraordinário. O extraordinário colocado no texto de Salles pode estar na esfera do real, mas não está muito distante da espetacularização de Kapo. Já em O Pequeno Soldado, a violência é representada de forma direta e justa ao ponto, tendo ainda a importância de retomar um contexto histórico: a representação dos dois lados do conflito Argelino.
Voltemos à trama. Assim que é capturado, o protagonista é levado a um pequeno apartamento, onde passa por um breve interrogatório. Como ocorrera durante todo o filme, os acontecimentos continuam a ser narrados de forma objetiva em voz over pelo próprio, a quem são apresentadas fotografias de antigos comparsas assassinados por se recusaram a cooperar. A partir daí, a violência surge de forma abrupta e explícita para o público: pouco antes de serem mostradas a Bruno, as fotos surgem em plano fechado na tela. Não se tem, portanto, o ponto de vista do personagem, mas sim a antecipação do que lhe será exposto, e sem qualquer preparo, pois a reação do personagem vem a posteriori, somos apresentados objetivamente aos rostos esfacelados das fotografias, algo que precede ao arremate dessa cena de abertura da sequência, feito por um dos algozes: “Espero que você seja corajoso. Isso será difícil”.
Na continuidade à sequência, o personagem é então arrastado a um banheiro, e desde já, sua narração em primeira pessoa alerta: “A tortura é monótona e difícil. É difícil falar dela, assim, apenas a mencionarei”. A voz over, parte pertencente ao discurso sonoro, estabelece assim desde o princípio uma forma concisa, direta, e porque não dizer, desdramatizada de narrar a violência ao qual o protagonista será submetido, já que seu texto aparece sem a presença de inflexões ou motivações. O restante do discurso sonoro assume um posicionamento semelhante, já que se propõe a uma construção realista em que o único elemento estranho é a música, que surge em momentos pontuais.
O discurso imagético também será calcado no realismo: não há qualquer tipo de fetichização ou estilização da violência nas imagens. No entanto, o “simples” conteúdo delas contrapõem de forma contundente a contenção quase desdramatizada presente na banda sonora e na atuação do ator, relativamente contida diante das situações apresentadas (o próprio personagem explica através da voz over que se obriga a não gritar).
A truculência das torturas mantêm-se, portanto, delimitada ao conteúdo imagético, que por sua vez, apóia-se num realismo calcado numa planificação simples, que se utiliza da flexibilidade da câmera na mão para evitar sucessivos cortes (e a cena em que queimam o prisioneiro é, de certa forma, uma exceção), algo que é bastante frequente também nos momentos de diálogo, mantendo-se assim o foco na ação do quadro. A montagem, por sua vez, utiliza o corte como elemento de dupla função: síntese e sublinhamento. Enquanto tem as mãos expostas ao fogo, vemos o rosto do protagonista em primeiro plano, ao passo que o texto é dado pelo narrador em primeira pessoa. O corte ocorre e nos leva ao mesmo personagem desmaiado horas mais tarde, sendo que, assim que a nova cena inicia, ele é imediatamente despertado por uma ducha de água fria. Suprime-se através do corte a apresentação e qualquer possibilidade de suspensão das cenas: quando cada qual se inicia, já estamos muito próximos de presenciar a violência usada contra o personagem, tendo-se assim retratos concisos e episódicos, mas que mantém grande força e verdade através de seus conteúdos.
Essa breve, porém intensa e polêmica sequência de violência em O Pequeno Soldado, sintetiza inúmeras características da Nouvelle Vague francesa, a começar por essa busca delimitadora por aquilo que é vital à cada sequência, cena e plano, e por fim, ao filme, criando uma estética da economia, da síntese e da essencialidade. Assim, os costumeiros planos e contra-planos usados em diálogos dão lugar ao uso de panorâmicas e chicotes que buscam os personagens, fazendo também uma exploração do espaço cênico; a câmera surge exacerbando sua própria existência, inclusive pela quebra da quarta parede, bem como a montagem, que deixa de ser invisível através dos jump cuts (ainda que esse recurso seja usado aqui de maneira mais moderada do que em Acossado), dos cortes em meio a movimentos desajeitados, das quebras de eixo, da fragmentação e da repetição de planos. Os personagens, por sua vez, deixam a unidade psicológica e emocional do classicismo, para assumirem como principal característica a ambiguidade.
Tem-se assim um Cinema que busca na opacidade, no distanciamento, na denúncia de sua própria existência, sua característica vital. A impossibilidade de uma percepção ilusionista é uma obrigação ética e essencial para com as imagens. Afinal, o chacoalhar da câmera, a visível manipulação do tempo, nos lembram a todo instante de que aquilo é Cinema, e segundo Godard, nesse mesmo filme, Cinema nada mais é do que a verdade vinte e quatro vezes por segundo.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

Bibliografia:
RIVETTE, Jaques. Da abjeção. Cahiers du Cinéma n° 120. Não paginado.
DANEY, Serge. O travelling de Capo.
SALLES, João Moreira. Imagens do real. O Cinema do real.

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