quinta-feira, 20 de outubro de 2011

TRABALHAR CANSA

Trabalhar cansa é um filme de monstro. Na trama, a criatura está entre as paredes de um mercadinho de bairro, mas poderia habitar armários ou viver sob as nossas camas. Pois este é um filme sobre instituições cotidianas, pertencentes à um microcosmo que nos é conhecido: a família, a escola, o trabalho, - este último, força motriz do desassossego. São, sobretudo, instituições que se mascaram para camuflar um horror profundo, que se esconde, simbolicamente, entre o concreto, ainda que sem sucesso, pois permite-se revelar aos poucos, seja no âmbito familiar, em que dona-de-casa e empregada ocupam uma relação de predador e presa no momento da contratação; seja no colégio particular que encena uma peça sobre abolição da escravatura sem uma única criança negra no palco; ou na esfera profissional, em que as relações se alternam entre o absurdo e o trágico.
O monstro de Trabalhar cansa atinge em cheio, em maior ou menor grau, estas três esferas. O monstro do filme está relacionado ao material, ao ter. Em suma, ao dinheiro e à falta dele. Ele se desdobra em Helena, dona-de-casa que assume a posição de mantenedora do lar; que de tão fodida, economiza ovos e amaciante, mas faz questão de se colocar em posição superior a da empregada, que no fundo, busca o mesmo que Helena e o marido. Acaba sendo irônico, portanto, o momento em que, ao ver a filha brincar com o dinheiro do caixa, Helena repreende “não brinca com isso, tem muita sujeira”. Afinal, não era justamente esse objeto sujo o causador de tanta angústia e sofrimento, além de responsável pelo despertar da “besta Helena”, da “besta Otávio” e de tantas outras bestas vistas pelo filme? Mas o melhor é renegar as bestas, essas criaturas sombrias que surgem em momentos esparsos, mas continuam ali latentes, escondidas no corpo. O certo é arrancar o monstro da parede e tacar fogo. É o que Helena e Otávio fazem, mas logo depois vemos imagens de São Paulo, infinitas paredes de concreto como aquelas que abrigavam o monstro, numa paleta de cores semelhantes ao cinza sombrio do mercadinho. A impressão é de que inúmeros outros monstros podem sair dali a qualquer momento.
Trabalhar cansa é por si só um filme monstro, objeto estranho num cinema brasileiro que com certa recorrência tem optado pela afetividade e, em decorrência disso, mas nem sempre, pela covardia. É voraz em seu flerte com o cinema de gênero e na utilização de um humor calcado no cinismo. E é um monstro mais que bem-vindo neste mundo de imagens belas, mas de plástico, que têm povoado o cinema nacional.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

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