terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"TROPA DE ELITE" E A FRÁGIL FRONTEIRA ENTRE FICÇÃO E REALIDADE

No livro O Brasil Antenado, Esther Hamburger introduz sua tese propondo uma breve reflexão sobre a fragilidade da fronteira que divide ficção e realidade. Para isso, evoca o caso da atriz Daniela Perez, filha da teledramaturga Glória Perez, brutalmente assassinada a facadas pelo companheiro de elenco, Guilherme de Pádua, com quem Daniela contracenava como par romântico na novela De Corpo e Alma. O caso teve desdobramentos históricos: recebeu maior atenção da mídia do que o impeachment do então presidente Fernando Collor (que, por sua vez, acredita-se ser uma reverberação direta da exibição de outra obra de ficção, a minissérie Anos Rebeldes), e deu força à criação e aprovação da lei do crime hediondo.
Dentre as especuladas motivações do homicídio, estavam a possível diminuição do personagem de Pádua na trama das oito, bem como a possibilidade de um crime passional, e um debate até então inédito dominou a mídia e a opinião pública: como e até que ponto estariam novela e realidade interligados e quais as reverberaçãos que essas duas esferas produziriam uma na outra? Se a questão cerne de Hamburger era pensar o papel da telenovela no Brasil, hoje, passados dezoito anos do assassinato de Daniela Perez, essa reflexão entre real e ficção adentra o território cinematográfico. Nada mais representativo do que a questão envolta em Tropa de Elite.
Num recente encontro público em que se debateu o filme, a pergunta sintomática e inevitável, parecia estar na ponta da língua: Tropa de Elite 2 influenciou ou não na tomada do morro do Alemão, no Rio de Janeiro? José Padilha e Bráulio Mantovani foram enfáticos ao confirmarem: esse símbolo pop no qual se transformara Capitão Nascimento certamente pesou no apoio dado pela população à ação realizada na favela, ainda que o próprio protagonista encerre o segundo filme condenando a polícia ao dizer que, quando corrupta, esta é tão nociva quanto o tráfico, como fez questão de sublinhar Mantovani. Essa afirmação feita pelo personagem, no entanto, parece não ter sido ouvida ou levada em consideração. O fato é que o Capitão Nascimento de Tropa de Elite extrapolou o próprio filme, foi deglutido, remontado, idealizado, ou seja, esse Nascimento “heróico” e ideal de outrora (que, na verdade, era cego, calejado e implacável) transcende o Nascimento atual que desafia as regras do jogo ao se impor contra o sistema. O Nascimento do primeiro filme, computado e vendido como herói benfeitor, numa circunstância em que era mentor trágico (o protagonista era Mathias) e num gênero em que bem e mal não são delineados, fora compreendido como um herói melodramático, sendo que só agora, no segundo filme, estamos neste escopo.
O abismo entre os dois Tropas é significativo. No primeiro, falávamos de tragédia: havia uma contradição social, um mundo fora de controle, um protagonista a ser treinado para engajar-se a um sistema, e um mentor, que ciente de tudo isso, era sujeito imutável, cumpridor de ordens, que embora soubesse de sua incapacidade de mudar o mundo, acreditava ser parte importante de uma engrenagem (e precisava encontrar peça tão boa quanto para substituí-lo). Era esse mentor que nos conduzia através da voz over calcada na problematização da jornada. Em Tropa 2, encontramos o melodrama: Nascimento desloca-se para o papel de herói, revê suas convicções e contrapõe-se a um mundo corrupto através de sua crença na justiça (não mais a qualquer preço, como outrora), mas também pelo filho, ou seja, adentramos no núcleo familiar. Ganha também um mentor, ainda que de forma inconsciente: o deputado Fraga (Irandhir Santos) é quem, involutariamente, coloca Nascimento na secretaria de segurança, e de maneira indireta conduz nascimento à jornada (não deixa de ser uma forma de Padilha se “redimir” com a esquerda, ainda que ele negue isso). O estilo da narração em over também é outro, como bem destacou a crítica da Contracampo, Tatiana Monassa: a voz do personagem faz agora asserções sobre o mundo e suas situações; raramente problematiza. Fosse essa narração (ou mesmo o gênero melodramático) usados no primeiro filme, teríamos provavelmente um filme duvidoso (talvez até fascista, como muitos injustamente o acusaram). Aqui, no entanto, o tom assertivo só reitera verbalmente e, sobretudo, didatiza, o mundo imagético e o tema.
Padilha e Mantovani transformaram Nascimento em herói, mas disseram não considerá-lo tal, talvez porque a gênese do personagem não tenha sido essa. Do Nascimento atual espera-se a determinação implacável, a postura de justiceiro, mas pouco do que ele denuncia se faz ouvir (seja corrupção dentro do próprio BOPE, dentro do governo - o sobrevôo em Brasília, - seja o jogo de interesses no meio jornalístico/midiático). O herói de Tropa de Elite 2 ficou aquém do (falso) herói precocemente proclamado pela mídia, aquele que Luciano Huck e as capas de revistas anunciaram como “herói nacional”, aquele que grita “pede pra sair” sem questionar os problemas do aparelho ao qual pertence, ao menos na cabeça do público. Esse imaginário em torno do personagem se transfere para o mundo real e, enquanto o espectador espera ver justiceiros determinados como o Capitão Nascimento, os policiais (do BOPE ou não) posam para as fotos da mídia tentando sê-lo. Esta por sua vez, intercala imagens da real invasão da favela, com outras tiradas do próprio filme, como se participacem de uma mesma realidade. São indicíos de que a verdadeira importância do segundo filme parece diminuída, sufocada pelo personagem, quando não são rebatidas, como fez um senhor no debate, que se revelou incomodado quando Padilha equiparou policiais, políticos corruptos e traficantes num mesmo patamar. Deve-se haver uma hierarquia, completou o homem. O filme parece se tornar menor do que o herói, que, por sua vez, acabou “clonado” e transferido para as ruas (e para as televisões, jornais, etc) como se todos fossem Capitão Nascimento, numa clara reverberação entre realidade e ficção. No entanto, torna-se óbvio que se a ficção influência a realidade, esta, por sua vez, vai de encontro ao filme refletindo o contexto social, cultural e histórico do país. E isso já justifica a existência e a importância do filme.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

domingo, 5 de dezembro de 2010

A REDE SOCIAL

Vetores igualmente trágicos se contrapõem em A Rede Social. Dois garotos, Mark Zuckerberg e Eduardo Saverin, alunos de Harvard e melhores amigos, até que se prove o contrário. O primeiro tem a obsessão de pertencer a um clube, que para ele, “proporcionam uma vida melhor”, ou seja, tem um desejo desesperado de integrar-se minimamente a um círculo social pretendido. Enquanto não atinge esse objetivo, menospreza e humilha àqueles a quem subjulga. O segundo, além de sociável, bonito e rico, está a um passo de integrar um desses clubes. Quando Zuckerberg recebe a réplica da namorada (agora ex), a quem ele diminuía sempre que possível, uma sociedade se forma entre os dois amigos: algo que os une e os separa até que, por fim, haja a mudança de um deles.
Harvard aparece pela primeira vez num cotidiano noturno e tudo parece nos conformes. No entanto, Zuckerberg surge no cenário e a trilha, antes agradável, solta os primeiros acordes dissonantes, algo que continua num crescendo incômodo enquanto acompanhamos o personagem. É a segunda cena do filme: na anterior, um longo diálogo que levara ao término do relacionamento, Zuckerberg tem mais um de seus limitados laços sociais e afetivos, cortados. Não à toa, no momento seguinte, ele cruza os pátios da universidade alheio ao mundo que o cerca, ainda que faça parte dele, abafado pelos sons disformes da trilha não diegética que agora sobrepõem o mundo da mise en scéne.
A “ex” vira uma obsessão, assim como o desejo de se encaixar em determinada esfera, anseio bastante comum a anti-heróis como Zuckerberg. Ele tem a ideia equivocada de que, ser aceito é ser respeitado, e ser respeitado é sinônimo de ser temido. Tem também absoluto pavor da rejeição, e logo, se não há como impedi-la, o melhor é alimentá-la. Tem-se, portanto, um personagem complexo: a ânsia pela aceitação faz com que Zuckerberg atropele quem quer que seja. No entanto, qualquer fio de atenção ou admiração o satisfaz, mesmo que elas venham acompanhadas de tristeza, medo ou rancor.
Se a tragédia de Zuckerberg está nessa destrutiva capacidade de fazer com que os outros se afastem, a de Saverin é, justamente, oposta. Altruísta ao extremo, ele é aquele que, quando não tenta integrar o amigo, está ao menos procurando dar-lhe algum conforto, e é tocante a cena em que ele interrompe os amassos na cabine de um banheiro, só para ter certeza de que o Zuckerberg, provavelmente virgem, está se saindo bem com a garota na porta ao lado.
O rosto propositalmente impassível de Jesse Eisenberg e a interpretação de Andrew Garfield, que trabalha com um jogo de motivações opostas e recorrentes (crença x desilusão), dão maior tonacidade a esses personagens. Já David Fincher volta a um tom mais sóbrio depois do melodramático e pretensamente poético, mas aborrecido, O Curioso Caso de Benjamin Button. Adotando enquadramentos sempre precisos, Fincher constrói o mundo de Zuckerberg pré-facebook, através de imagens “voláteis”, não no sentido da montagem (duração das imagens), mas sim da utilização das cores lavadas, da imagem enevoada e dos leves desfoques. Para o cineasta, é como se o mundo do protagonista só se tornasse concreto depois da rede social, e é só a partir daí que imagem merece tal materialização.
Ao final, o rosto de Zuckerberg, enquanto este atualiza obssessivamente a página do facebook da ex-namorada, na esperança de que ela o tenha aceitado como amigo. Ela que, no inicío, o chamara de idiota. Agora no fim, outra personagem contradiz: Zuckerberg não é um idiota; só se esforça ao máximo para sê-lo. A imagem síntese do personagem é, portanto, aquela em que ele, sozinho observa o interior de uma “vitrine”(na verdade, a porta da casa), onde Sean Parker (Justin Timberlake) festeja o êxito do facebook cercado de pessoas, enquanto ele permanece do lado de fora, impossibilitado de pertencer de forma real àquele mundo. A tragédia de Zuckerberg só não é pior do que a de Saverin: aquela dos que crêem em excesso e, da pior forma, perdem a inocência e a fé. Há, por fim, mudança, e ela é bastante sintomática dos dias de hoje.
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE: PARTE 1


Quando David Yates assumiu Harry Potter em A Ordem da Fênix, quinto e mais delicado capítulo da série de J.K. Rowling, considerando os esforços de adaptação, os desafios eram muitos: tratava-se não só da mais extensa obra da saga, como havia também a necessidade de se transpor uma trama estruturada basicamente na preparação dos eventos e alianças entre personagens importantes para os títulos posteriores. Como resultado, um filme cuja aceleração, colocada com fim de estabelecer um clima de tensão constante e guerra iminente - mas também para tapar buracos das várias subtramas reduzidas ou limadas - sobrepunha e esvaziava personagens, inclusos o trio protagonista.
Já em O Enigma do Príncipe, título seguinte, Yates encontrou equilíbrio ao propor um aumento gradual da tonalidade sombria, presente desde O Prisioneiro de Azkaban, ao passo que os últimos resquícios de um maravilhoso pueril se esvaíam, até se extinguir por completo ao atingir o clímax. Assim, ao final do sexto filme, já estávamos imersos na atmosfera dominante neste primeiro segmento de As Relíquias da Morte.
A iniciativa claramente comercial dos produtores em dividir o capítulo derradeiro em duas partes, escolha que, a princípio parecia duvidosa, foi revertida pelo diretor em benefício próprio. Aproveitando-se do respiro ganho pela segmentação da obra (e pela desculpa de que tudo era em prol de uma adaptação mais fiel), Yates injeta introspecção em Potter: dilata sequências; aplica enorme força não apenas aos diálogos, mas também aos silêncios; retrata insistentemente o isolamento de Harry (Daniel Radcliffe), Rony (Rupert Grint) e Hermione (Emma Watson) durante a jornada por um mundo que, outrora mágico, agora se demonstra hostil e duplamente massacrante: seja pelas paisagens grandiosas e desérticas, ou pelo plongée altíssimo em que os personagens são constantemente enquadrados quando caminham por estas. Em suma, um mundo em vias do apocalipse.
A somatória dessa devoção aos protagonistas, ao cuidado dispensado aos diálogos-ações e ao tempo estendido que as coisas têm nesse sétimo filme (algo que para parte do público pode ser frustante ou aborrecido), faz com que Yates mergulhe no tema, na essência da obra de J.K. Rowling, como somente Alfonso Cuarón fizera antes. Não à toa, ele cria a cena mais sublime e tocante de toda a saga (e que, ironicamente, não está no livro): na tentativa de animar Hermione e a si próprio, Harry tira a amiga para dançar ao som de Nick Cave (O Children). Ele brinca, os dois rodopiam, riem, trocam olhares, se tocam. Trata-se de uma cena breve, mas é o suficiente para que a jornada do herói e os perigos do mundo sejam suspensos, ainda que por esse intante único. Além dos corpos, apenas angústias, medos, frustrações, inseguranças, desejos, privações, carências, novos olhares e a canção sobre crianças que lutam contra seus temores. E David Yates aprofunda a relação entre Harry e Hermione como jamais qualquer um dos livros fizera. Mais do que isso, fala de adolescência e das dores dessa transição entre a infância e a idade adulta com desconcertante sensibilidade e precisão, sintoma este que afeta todo o filme e, justamente destaca As Relíquias da Morte: Parte 1, assim como O Prisioneiro de Azkaban, dos demais títulos de uma franquia que já apresentava surpreendente estabilidade. Numa série que aborda tão bem o crescer, pode-se enfim falar em maturidade.
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

sábado, 27 de março de 2010

FRIDAY NIGHT LIGHTS

I was living in a devil town; I didn’t know it was a devil town”. Tais versos pertencem à “Devil Town”, canção que embala o teaser promocional da terceira temporada de “Friday Night Lights”. Não, a série não se passa em um subúrbio sucetível à psicopatas como a Wisteria Lane de “Desperate Housewives”, nem tenta desvendar a hipocrisia por trás do refinamento de Beverly Hills, Orange County, ou mesmo do balado Upper East Side de NY, cenário de “Gossip Girl”, outra série teen contemporânea, gênero no qual “Friday Night Lights” pode se encaixar com ressalvas. Simplesmente porque a conservadora Dillon, cidadezinha fictícia no interior do Texas, é justamente o oposto do que se tentou cercar a adolescência televisiva nos últimos anos. Trata-se de uma cidade pacata, sem grandes badalações, onde o único passatempo é, a princípio, uma verdadeira paixão.
Em Dillon, o futebol high-school das sextas à noite é um verdadeiro evento; seus jogadores, jovens entre os 15 e 18 anos, grandes astros. A adolescência não é, portanto, uma etapa a ser vivida entre a impulsividade e o limite, como retrata a já citada “Gossip Girl”, certamente influênciada pela inglesa “Skins”, a mais nova precursora em tratar o mundo-cão juvenil. Para os garotos do Dillon’s Panthers é algo mais simples: trata-se apenas do futebol e de como essa paixão os impulsiona a um futuro distante de sua limitada cidade natal. É justamente aí que as coisas se complicam: a paixão transforma-se de um momento a outro em obsessão; a série confronta seus próprios personagens com uma nova realidade que sabota todos o percurso realizado por estes sem chances para uma total restauração das coisas, abrindo possibilidade apenas para uma adaptação. Assim se completa a storyline do quarterback Jason Street (Scott Porter), que após acidentar-se em campo, se vê obrigado a seguir na carreira de treinador para continuar lidando com o esporte que tanto ama. Ou a de Smash William (Gaius Charles,) garoto que em todo seu percurso tenta driblar o preconceito racial através do convencimento e da falsa auto-estima, e que acaba tendo seu futuro afetado justamente quando reage agressivamente a uma provocação racista.
O acidente com Street logo no primeiro episódio da série, abre espaço para a ascensão de outro personagem, Matt Saracen (Zack Gilford), garoto introspectivo que fora abandonado pela mãe, e que cujo pai está a serviço no Iraque, obrigando-o assim a viver sob a tutela da avó, que apresenta os primeiros sinais alzheimer. Saracen, que nunca havia sequer saído do banco de reservas, não só tem a oportunidade de se tornar estrela do time, como encontra no técnico Eric Taylor (Kyle Chandler) uma espécie de figura paterna. Mas até mesmo para alguém como Saracen, que não tem muito o que perder, os ventos podem mudar. Em contrapartida, vem Tim Riggins (Taylor Kitcsh), galã bad boy, mas com caráter, cuja sorte lhe sorriu algumas vezes, mas que sempre fora por ele dispensada, e que chega a um momento de total letargia ao perceber que a high-school se foi e com ela a posição de astro do Dillon’s Panther.
Essa breve descrição da trajetória de alguns dos personagens já delineia muito sobre “Friday Night Lights”. Mais do que uma série adolescente, trata-se de uma história em que jovens são catapultados ao estrelato com a mesma rapidez com que despencam dessa posição e em que o happy end nunca é pleno (tal qual em Juno, filme recente que aborda o universo adolescente através desse ideia ácida de que a felicidade nunca é completa, algo sempre fica pelo caminho). Mas trata-se, sobretudo, de uma história em que uma paixão (no caso aqui, por um esporte) pode tomar caminhos completamente distintos, afinal, de nada adianta a dedicação do coach Taylor ao time, ou de sua esposa, Tammy Taylor (Connie Britton) ao colégio em que ocupa o cargo de diretora, quando o sentimento da pequena Dillon em relação ao esporte, parece ultrapassar uma fronteira perigosa, desafiando questões éticas e morais, que dizem respeito, inclusive, à educação da juventude vista nesse cenário.
Assim, encontramos uma Dillon dividida na quarta e atual temporada da série. De um lado West Dillon, que guarda apenas boas recordações de um passado recente, enquanto seus antigos heróis (Riggins e Saracen) vagam letárgicos e inertes pela cidade. Do outro, East Dillon, área mais pobre que vê sua escola ser reativada, assim com o antigo time, agora liderado por Eric Taylor, que fora expulso dos Panthers por uma questão de interesses dos “figurões” da cidade. A paixão pelo antigo time se tornara um câncer, como bem definiu em episódio recente um dos personagens. Resta agora reerguer o então inativo Lions, ainda que problemas como a falta de motivação, as dificuldades financeiras e educacionais e a criminalidade sejam empecilhos presentes à essa tarefa. A ideia da cooperação, do trabalho em equipe, estão presentes, como sempre estiveram de forma muito positiva na série, ainda que, individualmente, cada personagem tenha se deparado com situações incontornáveis, tendo assim que abortar planos e sonhos. Há aí um certo sentimento de pessimismo, que não deixa de conferir realidade à trama. Bem verdade, assistimos West Dillon se afundar em meio ao orgulho e à obsessão, enquanto East Dillon se debate para ressurgir enquanto tudo corrobora contra. O futebol, esporte símbolo dos Estados Unidos, serve de cerne para esta que não deixa de ser uma interessante crônica americana, num microcosmo que pouco tem da riqueza e exuberância que estamos acostumados a ver/acreditar. A série escancara assim os problemas sócio-econômicos (a crise imobiliária chega a ser abordada em determinada storyline), os fanatismos e as limitações de uma cidadezinha pacata e conservadora. Têm-se aí um olhar reverso e curioso ao american way of life.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

NINE

Um abismo separa Chicago, filme de estréia de Rob Marshall, de Nine, mais recente trabalho do diretor. O irônico é que a distância entre os filmes está justamente no elemento comum a ambos: o espaço palco. Em Chicago o palco é parte da diegese fílmica; não há fronteiras entre trama e espetáculo, as partes coexistem e se confundem em um único filme. Em Nine isso não acontece: o palco é simples espetáculo filmado; o filme, mera desculpa para que desemboquemos nesse espetáculo.
Perdem-se as boas atuações do elenco estelar. Daniel Day-Lewis, Penélope Cruz, Judi Dench, Kate Hudson e Marion Contillard (provavelmente a melhor coisa do filme!) parecem se divertir em seus personagens. Pena serem, tal como a “parte filme”, meras desculpas para que adentremos ao show, que é o que interessa ao diretor. O próprio Marshall devia estar passando por uma crise parecida a do protagonista Guido Contini, e por isso mesmo investiu na área em que se sente mais confortável. Cria da Broadway, Marshall faz números musicais, no mínimo, competentes. O talento que exibe em coreografar seus atores-dançarinos, porém, não atinge as câmeras: se a decupagem do “filme” é simplória, a do “espetáculo” é quase nula. O palco (de novo o palco) acaba sendo aquilo que há de mais italiano nessa re-releitura do clássico de Fellini (deveria ser Sophia Loren, mas ela é mera figuração de luxo com um papel meramente burocrário – a matriarca italiana – assim como ocorre com Nicole Kidman).
Dizer que permanecemos imóveis na platéia é certo exagero, mas em momento algum penetramos o espaço ou somos sequer dotados de um olhar cinematográfico. No entanto, mais do que essa incompetência que parte da planificação e atinge a imagem, a maior falha de Marshall consiste em sua incapacidade de concatenar as duas partes de seu objeto. Se em Shine a light, Scorsese transformou um show dos Rolling Stones em puro Cinema, em Nine o Cinema é submisso ao simples registro imagético da dança, da música, do espetáculo. O pecado não está, portanto, no novo olhar ao clássico, está na falta de respeito para com o próprio Cinema.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

GUERRA AO TERROR

"Ora, ora, o que temos aqui?", questiona o sargento Sanborn ao encontrar os pertences do colega James Williams. "A caixa está cheia de coisas que quase me mataram", o sargento Williams responde de pronto. "E isto?", pergunta um terceiro soldado ao encontrar uma aliança presa a um cordão. "Minha aliança de casamento. É como eu disse", pontua Williams.
O diálogo acima é, a princípio, carregado de uma aparente banalidade presente numa conversa entre amigos, aqui num raro momento de descontração, mas é também a mais pura realidade no que diz respeito a Williams (Jeremy Renner, indicado ao Oscar de melhor ator), experiente soldado a serviço no Iraque, que se sente desconfortável fora do ambiente bélico, algo que fica ainda mais claro quando o reencontramos completamente deslocado em meio às prateleiras de um supermercado, no desfecho de Guerra ao Terror, momento de ruptura para o filme. A fotografia, antes quente, torna-se fria e pálida, a câmera aquieta e dá preferência aos planos abertos, sendo que outrora, fazia-se sempre rente aos personagens. A rotina do americano comum, a posição de chefe de família, não interessam ao personagem (ao menos, não mais), e isso está presente na imagem. Williams, afinal, já não consegue manter-se longe do vício que persegue filme afora. Ele deseja retornar ao Iraque, deseja, sobretudo, sentir de novo tensão e adrenalina proporcionados por uma guerra sobre a qual ele pouco questiona ou emite opinião. O que importa é o conflito e ponto. Williams tornou-se, portanto, engrenagem.
Essa busca pela adrenalina extravasa o filme de Kathryn Bigelow através da decupagem. A cada nova missão (as missões consistem em encontrar e desarmar explosivos ocultos), temos dois opostos: de um lado, os soldados norte-americanos; do outro, civis que compõem o cenário local e que não hesitam em questionar de forma dúbia os estrangeiros ("Where are you from?", eles perguntam como se tentassem lembrar aos americanos sua posição de invasores). Bigelow filma a cidade como um território amplo e aberto, onde os dois lados se misturam num espaço que é um verdadeiro campo minado. Os explosivos estão no meio da rua, em latas de lixo e carros abandonados. Os terroristas em meio aos civis. Fosse uma decupagem clássica de ação ou suspense, veríamos o soldado correndo contra o tempo para desarmar a bomba. Em paralelo, veríamos aquele que está pronto a acioná-la, esguio, assistindo a operação oculto em algum canto. Em Guerra ao Terror, soldados e terroristas estão face a face, a dificuldade está em identificá-los em meio à aglomeração de pessoas que assiste atenta a cada operação. A qualquer momento, qualquer um em meio à multidão pode apanhar um celular ou acionar um dispositivo e mandar tudo pelos ares. Bigelow coloca os espectadores num posicionamento semelhante ao dos soldados, ou seja, não somos observadores privilegiados, temos o mesmo tempo de reação dos próprios protagonistas. Tensão, adrenalina e paranóia se fazem presentes a nós tanto quanto a eles.
A busca de Williams por sua "droga" (war is a drug é a frase que figura no pôster do filme) é tamanha que o encontro com uma bomba-cadáver, cujo corpo é de um garoto que lhe vendia DVDs, o faz procurar por justiça, tornando-se uma desculpa para que o sargento se coloque diante de uma missão extra. Não que Williams se importasse realmente com o garoto. Na verdade, a ele só importa o estado constante de risco, que é o que lhe sacia, sempre que tenha completo controle da situação. Caso contrário, há a falha. Com poucos minutos para desativar uma bomba acoplada ao corpo de um homem em total desespero, e com o relógio correndo em contagem decrescente, William insiste até o instante em que sabe não arriscar própria segurança. Depois disso, corre em direção oposta, deixando o outro explodir a suas costas. No homem transformado pela guerra (e é disso que o filme de Bigelow trata), encontra-se um resquício, ainda que mínimo, de humanidade, distinguindo-o assim de mero objeto bélico. Vestígio o suficiente para fazê-lo reconhecer a perda do controle, pressentir o perigo iminente e temer pela própria vida.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

UM OLHAR DO PARAÍSO

Em “Um olhar do Paraíso”, uma garota de 14 anos lida com o desejo de vingança que nutre por seu assassino enquanto narra o cotidiano de sua família após a perda, diretamente de uma espécie de paraíso em que se encontra. Em “Almas Gêmeas”, duas garotas criam um mundo imaginário e quando percebem que este é ameaçado, planejam um crime. É inegável que Peter Jackson retorna aos temas do filme dirigido por ele e protagonizado por Kate Winslet em 1994, neste “Um olhar do Paraíso”, havendo também uma semelhança de abordagem, sobretudo, na construção do universo fantasioso que surge dentro do filme.
Pois o paraíso aqui construído é parecido ao de outrora. É infantilizado, dotado de uma visão bastante pueril do imaginário que se tem do cenário (paisagens imensas, campos de trigo, árvores enormes, etc). Bem verdade, não raras as vezes, afloram sobre a tela paisagens típicas dos wallpapers do windows. Em “Almas Gêmeas” já era assim (claro, guardadas as devidas proporções dos efeitos visuais). O mundo concebido por Jackson é exagerado em sua atmosfera de sonho, beirando, muitas vezes, o kitsch. Não se pode dizer, no entanto, que tais mundos não são condizentes com as histórias que estão sendo contadas, e muito menos com suas protagonistas.
Se o paraíso de Susie Salmon (Saoirse Ronan) é um verdadeiro potencializar de tudo o que se espera de um paraíso, é porque a personagem exige essa demanda. É disso que Jackson quer tratar: da inocência, da pureza, da infância, da imaginação, algo que pode se quebrar de uma maneira atroz, como ocorre com a própria protagonista que deixa-se seduzir justamente por um encantamento, uma curiosidade pueril que tem pela oferta de seu assassino. Susie mergulha então em seu mundo escapista e encantado, muito embora se veja as voltas quando lembra que sua família permanece estagnada na tragédia, algo que, somado ao desejo de vingança, impede a garota de seguir adiante. Quando resolve finalmente encarar seus medos (o reencontro com o homem que lhe tirou a vida e a forma com que fora assassinada), Susie tem seu mundo transformado, mergulhando num ambiente sombrio, que tem seu auge na cena em que ela explora a casa de seu assassino, caindo a partir de cada cômodo em diferentes cenários em que outros como ela foram executados. Tal como acontecia em “Almas Gêmeas”: a medida em que sua amizade era ameaçada, o mundo imaginário de Pauline (Melanie Lynskey) e Julie (Kate Winslet) tornava-se mais sombrio e ameaçador.
Em meio ao mundo absurdo que materializa metaforicamente a dor vinda do mundo real, Jackson encontra espaço para o suspense. A irmã mais jovem da falecida Susie, resolve reunir provas para que a culpa recaia sobre o assassino. A montagem paralela nos fornece a garota vasculhando a casa e o homem retornando ao mesmo local. A garota encontra um livro de pistas e passa a folheá-lo página por página, como se necessitasse de cada uma delas, de cada detalhe, para chegar à última, em que o crime é confirmado. Vítima e algoz já estão dentro da casa. A mise èn scéne dilata a ação. Quando a vítima faz um mínimo ruído, o homem avança escada acima, furioso, com os dentes crispados, a câmera de frente para ele, acompanhando o bote de perto. A cena não só constrói a tensão, como exacerba o personagem vivido por Stanley Tucci: ele é simplesmente o maníaco, o algoz, não tem profundidade alguma. Tucci é hipnótico em simplesmente encarnar uma figura plana: o mal. Tal como Wahlberg e Ronan: ele fazendo um pai que na dor encontra a letargia; ela, a garota assassinada, personagem mais complexa do filme justamente por exacerbar sentimentos conflitantes (o seguir adiante X o concluir do passado/ a inocência da infância X a impulsividade da adolescência).
Perdem-se Rachel Weisz e Susan Sarandon, cujas personagens nada vão além da superficialidade. Pode-se até tentar defendê-las alegando que essa busca por uma tridimensionalidade dos personagens não era intuito do diretor e que o foco talvez fosse o aflorar de um mundo alicerçado em questões interminadas, mal resolvidas por parte daquela que partiu. Mas há também a possibilidade de tudo não passar de um grande equívoco, já que a mistura entre suspense, drama e fantasia é de uma surpresa proporcional à incoerência. No entanto, uma coisa é certa sobre este “Um Olhar do Paraíso”: não foi à toa, que público e crítica torceram o nariz para o novo filme de Peter Jackson. Ele com certeza criou um objeto estranho.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

sábado, 2 de janeiro de 2010

FILMES 2009

Não há como fugir das famigeradas listas de final de ano. Pode-se dizer que não se deve levá-las a sério, ou simplesmente ignorá-las por completo, mas não há como negar que compilá-las é quase sempre um exercício interessante e, por que não assumir, divertido, embora seja também uma tarefa um tanto quanto árdua de ser realizada (a memória muitas vezes é fraca, assim como o olhar é mutável – ainda bem!). Em 2009, uma lista mais sucinta, dois empates (às vezes é impossível optar por um único filme em determinada colocação), além daqueles que chegaram quase lá. E sim, a lista está organizada por ordem preferencial (já que é para sermos parciais, afinal listas sempre são injustas e parciais, seremos por completo – risos), contendo ainda um breve comentário sobre cada filme. Vamos aos filmes:

1. Amantes, de James Gray
O abismo entre a felicidade possível e a idealizada num filme de pequenos gestos.

e
Deixa ela Entrar, de Thomas Alfredson
Traz à tona a violência e a crueldade como possibilidades à infância. De quebra, faz um comovente discurso sobre a questão do tempo.









2. Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino
A intriga delimitada ao espaço é a oração. A violência anárquica e explosiva, o ponto final.

3. Gran Torino, de Clint Eastwood
O caubói deslocado de seu espaço e tempo.

4. O Lutador, de Darren Aronofsky e Milk – A Voz da Igualdade, de Gus Van Sant
Filmes cujo cerne são seus diretores e protagonistas. Aronofsky encontra os Dardene; Van Sant, o mix entre Gênio Indomável e Elefante. Rourke (personagem) descobre ser herói no ringue, nunca fora dele; Penn se equilibra entre a sutileza e a afetação.

5. A Troca, de Clint Eastwood
O melodrama e o classicismo sob a economia de Clint Eastwood.

6. Inimigos Públicos, de Michael Mann
Um personagem cinematograficamente iconológico encontra a si próprio em lugar não menos apropriado: dentro do cinema.

7. Aquele querido mês de agosto, de Miguel Gomes
Pensava-se que a fronteira entre o documental e a ficção era tênue. Miguel Gomes prova que é invisível.

8. Entre os muros da escola, de Laurent Cantet
O contraponto letargia e impulsividade presente na juventude européia, já retratado por cineastas como Bruno Dummont e Pierre Jolivet, é aqui cercado pelo espaço. Professor e alunos iniciam em posição hierarquizada, porém, o confronto no pátio vai tornando-se inevitável. Ao final, a garota entorpecida, que não sente ou entende nada.

9. Avatar, de James Cameron
Cameron e suas histórias simplérrimas. O antigo conflito da colonização não só encontra aqui extrema atualidade, mas retorna ainda à inocência da imaginação e ao aprofundamento da técnica.

10. Moscou, de Eduardo Coutinho
Um desvelamento teatral e cinematográfico.
Menção honrosa: a série Friday Night Lights, drama teen televisivo pouco conhecido e praticamente ignorado pelas premiações, que merece ser visto pelo olhar avesso que dá ao sonho americano.
Outros títulos que chegaram quase lá (esses sim em ordem alfabética):
Arrasta-me para o inferno, de Sam Raimi
Coraline e o mundo secreto, de Henry Selick
Eu te amo, cara, de John Hamburg
Up – Altas Aventuras, de Pete Docter
Valsa com o Bashir, de Ari Folman
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ