sábado, 26 de julho de 2014

O LOBO ATRÁS DA PORTA


Quem é “O Lobo atrás da porta” no filme de Fernando Coimbra? A resposta parece óbvia conforme a trama se desenrola. Mas será que há apenas um lobo nessa história? 

Bernardo (Milhem Cortaz) seduz Rosa (Leandra Leal) na cena da estação de trem. Ela, por sua vez, se deixa seduzir, mas de boba não tem nada – quando descobre que Bernardo é casado, engendra uma teia no qual envolve não só o amante, mas sua família. O poder de Rosa se revela na cena em que ela revela questiona Bernardo sobre o fato de ele ter escondido sua situação conjugal. Ela conduz o diálogo e Bernardo apenas responde a essa condução, cedendo a seus encantos. Cede a ponto de dispensar o preservativo.

Rosa tem consciência de seu poder. Ela então se aproxima de Sílvia (Fabíula Nascimento), esposa de Bernardo, e da filha do casal. Em três momentos decisivos dessa aproximação, a câmera segue rente ao ombro e à nuca de Leandra Leal, como se acompanhasse a invasão da loba no território do rebanho. O ápice dessa ocupação se dá no momento em que Rosa é convidada por Sílvia a se sentar à mesa da família para um café – a câmera então recua para outro cômodo emoldurando a personagem na abertura da porta, enquanto a Sílvia, que já não é mais senhora de sua casa, some, velada pelas paredes. É Rosa quem reina ali.

Mas Rosa descobre um predador à altura lá pelo meio da trama, quando a gravidez indesejada se revela: para “proteger” sua família (tardiamente), Bernardo reage com violência – arma aquele aborto brutal. Contudo, ele se esquece que Rosa é reativa: da mesma forma que ao ser seduzida, respondeu com sedução (assumindo, a partir daí, o controle), ao ser violentada, devolve também violência. O retorno de Rosa se antecipa naquele plano metáfora-síntese do mirante: sozinha, aprisionada, com a cidade à vista, mas não sem antes se jogar do precipício. Ela se joga: comete o crime que encerra o filme.

Sim, Rosa é uma loba, claro, mas não a única, e muito menos a primordial. Chega-se ao final do filme, mas ao olha-lo em retrocesso, isso se explicita numa forte cena protagonizada por Cortaz e o delegado vivido por Juliano Cazarré (numa ótima participação): o delegado interroga Bernardo sobre seu envolvimento com Rosa e ele assume o caso extraconjugal, mas emenda a justificativa – “sabe como é, doutor, coisa de homem”. O delegado retruca “não, não sei como é”. O diálogo se encerra e há um longo olhar entre os dois. É um olhar moral, que persiste e traz à tona a culpa de Bernardo: não fosse por uma pequena fresta aberta (aquele xaveco meio torto e constrangedor de homem casado meio sem prática), a loba não teria entrado. Dali desencadeou-se a tragédia. Estamos, claro, no terreno do cinema moral.


Leandra Leal é a maior potência do filme (e acho que desde Rosanne Mulholland em “Falsa Loura” não via uma personagem assim hipnótica no cinema nacional). Sua Rosa transita entre a sensualidade de uma Lolita tardia e suburbana e a atitude doentia de uma fera violentada (ou de alguém que se torna fera por ter sido violentada). Em determinada cena, ela afirma ao delegado que a garota por ela sequestrada se encontra em segurança. Descobriremos adiante que se trata de uma mentira, mas na mente deturpada da protagonista deve fazer certo sentido: afinal, num mundo em que nem ela, loba cheia de expertise e malícia, conseguiu sair ilesa, como será capaz de sobreviver o extremo contraponto? A dura resposta é Sílvia, vítima maior desses dois lobos que circulam pela trama.

sábado, 19 de julho de 2014

TRANSFORMERS: A ERA DA EXTINÇÃO


Toda montanha-russa tem seu clímax – geralmente uma vertiginosa queda ou um looping. “Transformers: a era da extinção”, quarto episódio da série de Michael Bay, se engaja a esse estilo de cinema “montanha-russa”; aliás, como boa parte do cinema de ação da Hollywood atual. O problema é que desde o começo entramos nesse grande looping que, com o passar da projeção, se revela eterno. Não há aceleração além daquela que inicia o movimento; estamos, portanto, num movimento uniforme. E, em termos de narrativa, uniformidade tende ao tédio. Nem Mark Wahlberg, melhor ator que o protagonista anterior da série (Shia Labeouf, cujo sucesso, para mim, é um mistério) consegue dar algum interesse ao filme (o conflito entre seu personagem e filha tem a sutileza da pata de um Transformer).

No início da década passada, Doug Liman e Paul Greengrass colocaram em voga a câmera na mão utilizada no cinema de ação, e, sem querer, prestaram um desserviço ao gênero. Claro que a encenação com esse tipo de câmera já existia (inclusive em filmes de ação), mas desde então tem sido usada à exaustão. Pior, trata-se de um “estilo” que facilita um bocado a vida de cineastas medíocres como Bay, afinal, tudo é possível de ser montado – raccords são ignorados e, na dúvida sobre quais planos usar, usam-se todos.

É o que acontece aqui: o filme é picotado para que tudo seja visto sob diversos pontos de vista, como se cada plano de Bay fosse uma obra-prima indispensável. Não é o caso, ainda que o cineasta pareça acreditar piamente nisso. As imagens de Bay sofrem de certo paradoxo: sua câmera capta a ação como se filmasse um carro em exposição num shopping, ou seja, procura valorizar um produto mostrando-o em sob diversos ângulos. São, portanto, imagens publicitárias que, no entanto, esbarram no que foi dito há pouco: os tremeliques do cinema de ação. As imagens publicitárias, que deveriam ser límpidas e belas para que o cliente possa ver (e comprar) o produto, se deixam influenciar por essa “estética” da câmera na mão onde se enxerga cada vez menos. Como resultado, gruas e travellings que, ou se transformam em borrões, ou são interrompidos prematuramente pelo corte (fora a ineficácia de Bay ao compor seus quadros).

Este é o grande paradoxo que habita “A era da extinção”: pendendo entre a publicidade (que Bay faz com ineficiência) e a pretensão pela obra de arte (que Bay acha que faz), tem-se o pior dos filmes: aquele que além de ruim, é inchado.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

SEVENTH CODE



Num primeiro momento, “Seventh Code” parece se engajar ao estilo de “Tokio Sonata”, por se afastar do horror recorrente nas obras de K. Kurosawa e centrar sua trama numa esfera cotidiana e em personagens que, em trânsito, vivem suas buscas sem terem muita certeza de quais elas são (ao menos aparentemente). Mas, de repente, a trama de máfia que havia sido brevemente introduzida no começo do filme, sobressai e muda um bocado a forma das coisas – do naturalismo do restaurante passamos ao apartamento, espaço estranho que parece concatenar uma série de imagens estereotipadas quando se pensa em Rússia, país onde se passa a história e o filme foi filmado. A presença de uma cantora pop japonesa como protagonista de uma história sobre máfia me fez lembrar um pouco de “Sailor suit and machine gun”, de Shinji Sômai, filme cheio de zooms e câmeras na mão (Kurosawa também usa câmeras na mão quando segue sua personagem pelas ruas). Da decupagem de seus filmes de horror, Kurosawa traz principalmente os planos gerais em que as ações acontecem muito distantes, pequenas no quadro – e contrapostas aos espaços abertos, sobretudo urbanos, rendem planos bem bonitos ao filme. Passado o espanto da virada na trama já em seu terço final, há ainda o videoclipe da atriz/cantora entrecortando as cenas, o que faz do filme uma esquisitice ainda mais divertida.

domingo, 6 de julho de 2014

GODZILLA PELA JANELA


Nos créditos iniciais de “Godzilla”, escritos diversos vão sendo velados por tarjas, deixando à vista apenas os nomes da equipe. É o único momento do filme em que dados – ainda que irrelevantes, afinal, só existem por conta do conceito dos créditos – são camuflados. A partir daí, o filme dirigido por Gareth Edwards opera sob o comando do desvelamento.

Esse desvelar, no entanto, significa revelar sob uma pré-condição: há sempre limites – do objeto revelado, do olhar de quem o vê, da janela de onde se olha. O enquadramento cinematográfico delimita um recorte que expõe parte de uma diegése, o que não significa que essa diegése se restrinja ao quadro. Há o contracampo, o extraquadro. Há um mundo à espera de um movimento de câmera ou de um corte, pronto a ser explorado. O cinema é uma arte de rearranjar molduras; ou, por vezes, reconhecer que, por mais que elas possam ser reordenadas, nem sempre isso basta.

“Godzilla” se constrói através de janelas: a cientista vivida por Sally Hawkins está no helicóptero; ao fundo, vê-se o céu. De repente, a aeronave inicia a descida e, antes mesmo da personagem, vemos a imensa escavação onde fósseis foram encontrados. É também através de uma janela, desta vez pequena a ponto de restringir o rosto de Juliette Binoche, que se dá o momento em que sua personagem pede para que o marido, interpretado por Bryan Cranston, cuide do filho ainda pequeno (e há outra mãe que se despede através de janela num segundo momento do filme). Anos mais tarde, o fracasso desse apelo é estampado no rosto deste pai, e nos é antecipado pela janela que separa as salas de uma delegacia. O rosto de Cranston, aliás, aparece adiante num reflexo grotesco bastante representativo das perturbações daquele homem. A superfície desta reflexão: mais uma vez, uma janela.

Mas, ainda que seja um filme de desvelamento, “Godzilla” é, sobretudo, um filme de monstros com dimensões colossais, cujos corpos nem sempre são possíveis de serem contidos em uma moldura. Soma-se a isso o fato de que os “Mutos”, as outras criaturas que habitam a trama, colocam em colapso o mundo com o qual nos acostumamos ao desestabilizar tudo o que é digital (e o embate entre digital e analógico já havia sido tema recentemente em “Círculo de Fogo”, filme de monstros de Guillermo de Del Toro). Ou seja, tem-se um filme em que tudo está exposto, revelado, sem que, no entanto, o olhar seja uma experiência garantida, já que as janelas pelas quais vemos são muitas vezes ineptas, enquanto os cenários, corpos e objetos, além de mergulhados na escuridão, parecem se fundir numa massa homogênea e indistinguível, como quando um edifício tomba se incrustando ao corpo do lagarto gigante. Sob a luz do dia, as janelas laterais do ônibus escolar são suficientes apenas para se ter um vislumbre das costas de Godzilla; à noite, o sinalizador de luz corta a escuridão até revelar uma mínima parte daquele gigante incontido que avança sobre a cidade. Num filme de imagens escuras e enevoadas, o ápice se dá quando o monstro protagonista revela já lá pelas tantas, um poder extraordinário: o de ele próprio emitir luz.

No “Godzilla” de Edwards, esse mundo de janelas (de ônibus e metrôs à televisões e celulares) em que vivemos, entra em falência, e nada é mais contundente ao demonstrar isso do que duas cenas que são montadas em sequência: na primeira, tem-se o início da batalha entre o monstro-título e um dos Mutos num aeroporto – e a câmera se põe interna no saguão envidraçado, de onde os passageiros assistem a batalha que se estende naquela janela análoga a uma tela de cinema. Trata-se de uma “tela” ineficaz no sentido de conter os corpos, já que, por maior que seja, dá conta apenas dos pés de Godzilla. Contudo, é eficiente quando se trata de comover, de chamar a atenção para uma imagem – e o pânico dos passageiros diante desta imagem é prova disso. A cena muda e a batalha tem continuidade em outra janela: o garoto assiste tudo pela televisão e tenta, em vão, chamar a atenção da mãe, que, entre os afazeres da casa, mal nota o que acontece. É o mau desta janela: na cena vista pelo menino, ela até dá conta dos corpos, da luta, mas por ser lugar de um fluxo de imagens tão ordinárias, acaba não sendo vista quando exibe algo que compõe uma esfera cada vez mais módica – a das imagens extraordinárias.