domingo, 15 de novembro de 2009

2012

Há duas coisas em que o diretor Roland Emmerich é inegavelmente bem sucedido: a primeira é em criar catástrofes mundiais, muito embora a vista aqui tenha, em alguns momentos, me dado a impressão de estar num brinquedo da Disney World, onde tudo explode, desaba ou se choca em seu devido lugar e tempo, sem jamais criar uma ameaça real aos “passageiros” da atração (aqui, os personagens do filme). A segunda é construir a imagem de uma determinada figura.
Em Independence Day (1996, ou seja, era Clinton) vimos o presidente americano vivido por Bill Pullman liderar o ataque aéreo feito à nave alienígena. Em O Dia Depois de Amanhã (2004, era Bush), a imprudência diante as questões ambientais gera a catástrofe e faz com que os americanos peçam asilo à países do terceiro mundo. A primeira vez em que vemos o presidente americano em 2012, ele adentra uma sala e se aproxima da câmera colocada a altura da cintura, ou seja, a princípio, nós não estamos à altura desta figura emblemática. Mas a câmera sobe e logo encaramos o presidente de frente: inicia-se assim, neste simples movimento de câmera, a construção de uma “nova” imagem de governante, que contradiz e redime a vista no filme catástrofe anterior, aproximando-se mais do presidente visto no filme de 96. Coincidentemente, ou não, o presidente americano em 2012 é negro, e condiz com o ideal de governante buscado pelos americanos na figura de Barack Obama, e basta repassarmos alguns momentos do filme para comprovarmos tal
ideia.
Em seguida a apresentação do personagem (vivido por Danny Glover), vemos o primeiro encontro do presidente com a filha. A moça chega, por algum motivo, furiosa à sala do pai, e o presidente imediatamente dispensa o cientista e o assessor que o acompanhavam, afinal, antes de um líder político, ele é um pai de família. Durante o diálogo entre pai e filha, o homem evoca a memória da já falecida esposa. Pronto, temos construídas aí duas camadas de um mesmo personagem: o governante e o pai. A próxima surgirá adiante, quando o homem, humilde, reconhecendo sua impotência diante à catástrofe, ora numa capela: além do governante e do pai, temos aí o homem de fé. Por fim, a cena em que ele abre mão da própria salvação (claro, que sem que a filha saiba, afinal a família deve ser resguardada) para viver seus últimos instantes em solo americano, dispondo-se até mesmo a encontrar os pais de uma garotinha: a construção é assim completada, e a figura símbolo do poderio norte-americano, é agora um homem do povo, disposto a sacrificar-se por ele sem jamais abandoná-lo. Ao encarar a morte, o presidente rememora pela segunda vez a falecida esposa, evocando assim outro ponto bastante importante do filme de Emmerich: a família como única fonte de salvação.
Saímos de um núcleo e vamos a outro. No centro agora, o pai americano comum (John Cusack), e a família desestruturada. O apocalipse vem para reestruturar esse núcleo familiar, reaproximar pai e filho (tal como em Guerra dos Mundos, O Dia Depois de Amanhã e Presságio), esposa e ex-marido e fazer com que a garotinha supere algo e deixe as fraldas. Tudo o que não pertence a esse núcleo não merece salvação e é eliminado assim que sua função na jornada é concluída (exemplo, o segundo marido da mãe, que permanece vivo enquanto sua presença é necessária para auxiliar na fuga). Tudo o que é considerado imoral, também (a amante do russo e o próprio russo). A moral griffithiana encontra ressonância no cinema apocalíptico de Roland Emmerich, que faz cada vez mais um cinema plano, calcado em efeitos especiais e estereótipos moralistas. E se os outros dois filmes tinham algum interesse, 2012 revela-se um amontoado de clichês que se estendem mais do que o necessário, desembocando num terceiro ato, que, por sua vez, desenrola-se numa versão apocalíptica desnecessária do Destino de Poseidon. Ou seja, nada que compense/justifique quase três horas numa sala de cinema.

por ALVARO ZEINI CRUZ

BASTARDOS INGLÓRIOS

Durante toda a sessão de Bastardos Inglórios, outro filme fez-se recorrente em minha memória. Não, não me refiro às já bastante comentadas referências que Quentin Tarantino faz a Serge Leone, nem a Brian De Palma dentro de seu novo filme, mas sim a uma obra dirigida por Alfred Hitchcock, estrelada por Ryan Milland e Grace Kelly em meados da década de 50. Enquanto via Bastardos Inglórios, Disque M para Matar não me saia da cabeça.
Era, no mínimo, intrigante essa associação quase que estapafúrdia entre dois filmes que aparentemente pouco têm a ver um com o outro, realizados por cineastas um tanto quanto díspares, sendo Hitchcock um mestre do ilusionismo clássico, enquanto Tarantino, um comentador irônico e nada discreto do próprio Cinema. Afinal, em que ponto se dava a ligação entre essas obras? Onde, como, quando ou por que o filme de guerra de Tarantino se tangenciava (na minha cabeça) ao suspense de assassinato de Hitchcock? Tais questões só me foram respondidas quando deixei de pensar em Bastardos Inglórios como um todo, para enfim analisar a narrativa a partir de sua gênese, tal como ela nos fora apresentada desde o princípio: de forma capitular, episódica.
Já há alguns anos não revejo Disque M para Matar, mas vamos lá: tínhamos ali um encontro entre duas partes (antigos colegas de escola) e a partir desse encontro um jogo, uma chantagem, se desenvolvia a partir de uma intriga, tudo fortemente ligado ao diálogo e delimitado ao espaço cênico da sala de estar de um apartamento. Pensemos agora no prólogo de Bastardos Inglórios, na cena referencial a Leone: do horizonte, surge o inimigo que é contraposto à família em sua aparente normalidade. O inimigo é convidado a adentrar a casa e um falso jogo de cordialidade entre os lados é estabelecido. Desse encontro surge a intriga e ambos os lados tentam provar suas “teses”, criando-se assim um sentimento de dubiedade no espectador: afinal, quem é a figura mais forte do embate, o fazendeiro LaPadite ou o Coronel Hans Landa? Tal jogo é dilatado até o limite em que um dessas duas figuras cede a pressão psicológica e “cai”: é a deixa para que a violência entre em cena e encerre o capítulo.
Esse esquema se repete durante o filme, e se faz presente tanto no momento em que Shoshanna é colocada frente a frente com o próprio Landa, o executor de sua família, quanto na longuíssima sequência ambientada dentro de um bar. Em ambas as cenas temos uma repetição da situação hitchcockiana de Disque M para Matar: dois lados, uma intriga, a suspensão, a força do diálogo, e, por fim, o espaço, como elemento delimitador. Nesta última cena, no entanto, tudo isso é potencializado, e se Hitchcock declarara que seria capaz de fazer um filme inteiro dentro do espaço ínfimo de uma cabine telefônica, Tarantino faz algo assim ao exercitar sua mise en scène dentro de um espaço limitado, povoado por um número razoável de personagens, dividido em pelo menos três diferentes focos de ação (as duas mesas de clientes e o espaço do caixa). É, provavelmente, o momento síntese de Bastardos Inglórios: um filme que, assim como toda a obra de Tarantino, está extremamente calcado na imagem. Não só na imagem, mas no próprio Cinema (não à toa, o Cinema torna-se a principal arma na vingança de Shoshanna), e como o Cinema há muito deixou de ser só imagem, encontramos aqui o som. O palavrório excessivo aqui não é muleta, ele coexiste com a imagem e encontra uma força própria, que corrobora na dilatação, na suspensão, no fortalecimento da intriga e dos turn-points que fazem parte do suspense. Tal como fazia Hitchcock em Disque M para Matar (e em tantas outras obras). Álias, vale a ressalva: há uma diferença básica entre os dois filmes. Hitchcock considerava Disque M para Matar um filme menor. Aqui, Tarantino pontua, com razão, pela boca do personagem de Brad Pitt: Bastardos Inglórios é definitivamente de sua obra-prima.

por ALVARO ZEINI CRUZ