terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O HOSPEDEIRO


Bastam alguns minutos do prólogo para sintetizar aquilo que transcorre a tela durante os quase 120 minutos de projeção de O HOSPEDEIRO, do sul-coreano Bong Joon-ho. Logo de cara, testemunhamos o fato que levará a origem da criatura título do filme, e que conseqüentemente desencadeará o conflito da trama. Num pequeno laboratório americano localizado em Seul, acompanhamos a tarefa designada a um cientista sul-coreano de despejar ácido fórmico nas águas do rio Han, que corta e abastece a cidade. Após uma mal-sucedida tentativa de dissuadir seu chefe, um autoritário cientista norte-americano, de tal propósito, acompanhamos o ato do subordinado através do primeiro dentre os muitos magníficos planos construídos por Joon-Ho. É através de um travelling lateral que constatamos o impacto narrativo (além de ambiental) que tal ato virá a gerar num futuro próximo, fazendo com que O HOSPEDEIRO revele logo nesses primeiros minutos seu cunho sócio-político envolto em toda a história.
Um cross fade faz com que a ação dê um salto temporal de alguns anos na história, centrando uma câmera estática em duas figuras às margens do Han. Neste segundo momento, acompanhamos o diálogo leve e informal entre os dois pescadores sobre uma estranha criatura que encontram durante a pescaria. A criatura foge e um novo salto temporal nos leva ao terceiro ato do prólogo.
Este terceiro momento nos leva ao tempo onde se passa a ação da história. A câmera, mais uma vez, absolutamente observativa, centra-se na figura de um suicida preste a se jogar de uma ponte sobre o Han. Recorrendo a ângulos inusitados, Joon-Ho consegue através da mise-en-scène criar não só uma seqüência dramática, mas também absurdamente poética. Assim, os principais elementos presentes em O HOSPEDEIRO se completam, desmascarados logo no prólogo, fazendo do filme uma obra com alto cunho político-social-cultural, com inúmeros momentos de descontração e até comicidade, alternados a outros de grande dramaticidade e poesia. Acaba tornando-se ousado por reunir tão diferentes facetas num filme que em muito se assemelha ao horror B, e que certamente passaria despercebido em meio a tantos outros filmes de criaturas.
Apropriando-se de elementos da narrativa clássica hollywoodiana, utilizando uma narrativa cronológica, montada à risca dos principais manuais de edição, ou seja, utilizando-se de cortes rápidos nas cenas de ação, além da câmera freqüentemente inquieta nesses mesmos momentos, O HOSPEDEIRO suga aquilo que acredita que o cinema americano tem de melhor, e segue ainda a tendência pós-moderna de ousar até o limite da compreensão do expectador comum. E é justamente em sua ousadia que acerta.
Ao fim do prólogo, somos finalmente apresentados ao núcleo da trama, e assim, à primeira grande ruptura que O HOSPEDEIRO faz ao cinema clássico hollywoodiano. O primeiro plano que temos do protagonista é de uma figura desajeitada que dorme sobre o balcão de uma venda, e que por pouco não é assaltada por uma criança. O filme apresenta enfim seu herói bufão, que considerado por todos os outros como um idiota, terá que lutar contra o monstro hospedeiro que levará sua filha. Interpretado por Kang-ho Song (LADY VINGANÇA), o mocinho Park Gang-Du quebra quase que por completo o arquétipo de herói, já que, suas características o tornam um personagem bufão que por muitas vezes tem partes de sua jornada cumpridas por terceiros. Park só não deixa a figura do herói por completo, porque tem uma característica quase que intuitiva de salvar a filha, com quem mantém uma relação quase fraterna. As decisões e atitudes do protagonista são ainda constantemente questionadas por seus companheiros de jornada (um irmão desempregado e uma irmã competidora em arco e flecha), exceto pelo pai, que surge como arquétipo do mentor.
O surgimento da criatura vem logo em seguida, na primeira cena antológica do filme. Observada de longe por curiosos que não conseguem identificá-la, a criatura mergulha nas águas do Han surgindo logo após fora de quadro, enquanto nós espectadores apenas observamos a expressão de horror do protagonista. A seqüência se desenvolve frenética, com cortes rápidos, uma câmera intensa e ótimos efeitos especiais (o monstro fora criado pela empresa de Peter Jackson), seguindo a atual cartilha de como se fazer uma boa cena de ação. Seu grande diferencial acaba sendo os ângulos curiosos em que vez ou outra Joon-ho posiciona a câmera. Interessante é constar que, embora num filme claramente fictício, o diretor opta por utilizar a verossimilhança, principalmente nos momentos de ação. Assim, os heróis de O HOSPEDEIRO são pessoas comuns, que lutam com as armas que têm em mãos (como uma placa de trânsito), tornando tudo mais crível ao expectador. Joon-Ho não hesita ainda em estender o tempo sempre que necessário, principalmente em momentos de grande dramaticidade, criando um paradoxo à edição rápida usada em cenas de ação (a cena de Park chorando, ao lado do pai e dos irmãos no velório da filha, é mais um exemplo da poesia contida no filme).
O HOSPEDEIRO ousa ainda em misturar ao cinema de horror, doses de outros gêneros cinematográficos. Além de conter um forte apelo cômico, flerta ainda com o cinema trash, adentra o drama familiar, reproduz um contexto histórico atual, além de tangenciar os blockbuster americanos. Com críticas severas ao imperialismo norte-americano, e mais diretamente, à guerra contra o Iraque, O HOSPEDEIRO é a prova de que um filme de monstro pode apresentar críticas mais profundas em outras camadas (algo que pode ocorrer à outros gêneros, como o infantil no recente RATATOUILLE). Seu caráter sócio-político culmina enfim em sua antológica seqüencia final, que envolve uma manifestação popular contra o suposto vírus trazido pela criatura (vírus que em determinado momento saberemos não existir) e o confronto final do trio protagonista com o tal hospedeiro.
Caso claro de cinema de gênero, O HOSPEDEIRO é, a primeira vista, convencional em sua camada mais superficial, ou seja, dá verossimilhança ao mundo fictício ao qual se propôs a criar, e sua trama é composta por um estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação do elemento perturbador, porém sua representação (modo que se refere ou confere significação a um mundo ou conjunto de idéias) vai além da primeira camada. Em termos de estrutura (modo como os elementos fílmicos se combinam para criar um todo diferenciado), inova por conciliar elementos distintos (como humor, ficção científica e terror trash), algo quase sempre incompatível ao cinema clássico hollywoodiano. Por fim, como ato (processo dinâmico de apresentação de uma história a um receptor) atinge aos mais diferentes tipos de expectador; desde aquele que procura o puro entretenimento numa ficção cinematográfica, até aquele em busca de uma obra com ampla significação artística e narrativa, construída através da boa utilização da gramática cinematográfica. Não à toa, O HOSPEDEIRO conta com a maior bilheteria feita (cerca de 13 milhões de pessoas) em seu país de origem, a Coréia do Sul, e figura em inúmeras listas da crítica entre os melhores do ano.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

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