terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"TROPA DE ELITE" E A FRÁGIL FRONTEIRA ENTRE FICÇÃO E REALIDADE

No livro O Brasil Antenado, Esther Hamburger introduz sua tese propondo uma breve reflexão sobre a fragilidade da fronteira que divide ficção e realidade. Para isso, evoca o caso da atriz Daniela Perez, filha da teledramaturga Glória Perez, brutalmente assassinada a facadas pelo companheiro de elenco, Guilherme de Pádua, com quem Daniela contracenava como par romântico na novela De Corpo e Alma. O caso teve desdobramentos históricos: recebeu maior atenção da mídia do que o impeachment do então presidente Fernando Collor (que, por sua vez, acredita-se ser uma reverberação direta da exibição de outra obra de ficção, a minissérie Anos Rebeldes), e deu força à criação e aprovação da lei do crime hediondo.
Dentre as especuladas motivações do homicídio, estavam a possível diminuição do personagem de Pádua na trama das oito, bem como a possibilidade de um crime passional, e um debate até então inédito dominou a mídia e a opinião pública: como e até que ponto estariam novela e realidade interligados e quais as reverberaçãos que essas duas esferas produziriam uma na outra? Se a questão cerne de Hamburger era pensar o papel da telenovela no Brasil, hoje, passados dezoito anos do assassinato de Daniela Perez, essa reflexão entre real e ficção adentra o território cinematográfico. Nada mais representativo do que a questão envolta em Tropa de Elite.
Num recente encontro público em que se debateu o filme, a pergunta sintomática e inevitável, parecia estar na ponta da língua: Tropa de Elite 2 influenciou ou não na tomada do morro do Alemão, no Rio de Janeiro? José Padilha e Bráulio Mantovani foram enfáticos ao confirmarem: esse símbolo pop no qual se transformara Capitão Nascimento certamente pesou no apoio dado pela população à ação realizada na favela, ainda que o próprio protagonista encerre o segundo filme condenando a polícia ao dizer que, quando corrupta, esta é tão nociva quanto o tráfico, como fez questão de sublinhar Mantovani. Essa afirmação feita pelo personagem, no entanto, parece não ter sido ouvida ou levada em consideração. O fato é que o Capitão Nascimento de Tropa de Elite extrapolou o próprio filme, foi deglutido, remontado, idealizado, ou seja, esse Nascimento “heróico” e ideal de outrora (que, na verdade, era cego, calejado e implacável) transcende o Nascimento atual que desafia as regras do jogo ao se impor contra o sistema. O Nascimento do primeiro filme, computado e vendido como herói benfeitor, numa circunstância em que era mentor trágico (o protagonista era Mathias) e num gênero em que bem e mal não são delineados, fora compreendido como um herói melodramático, sendo que só agora, no segundo filme, estamos neste escopo.
O abismo entre os dois Tropas é significativo. No primeiro, falávamos de tragédia: havia uma contradição social, um mundo fora de controle, um protagonista a ser treinado para engajar-se a um sistema, e um mentor, que ciente de tudo isso, era sujeito imutável, cumpridor de ordens, que embora soubesse de sua incapacidade de mudar o mundo, acreditava ser parte importante de uma engrenagem (e precisava encontrar peça tão boa quanto para substituí-lo). Era esse mentor que nos conduzia através da voz over calcada na problematização da jornada. Em Tropa 2, encontramos o melodrama: Nascimento desloca-se para o papel de herói, revê suas convicções e contrapõe-se a um mundo corrupto através de sua crença na justiça (não mais a qualquer preço, como outrora), mas também pelo filho, ou seja, adentramos no núcleo familiar. Ganha também um mentor, ainda que de forma inconsciente: o deputado Fraga (Irandhir Santos) é quem, involutariamente, coloca Nascimento na secretaria de segurança, e de maneira indireta conduz nascimento à jornada (não deixa de ser uma forma de Padilha se “redimir” com a esquerda, ainda que ele negue isso). O estilo da narração em over também é outro, como bem destacou a crítica da Contracampo, Tatiana Monassa: a voz do personagem faz agora asserções sobre o mundo e suas situações; raramente problematiza. Fosse essa narração (ou mesmo o gênero melodramático) usados no primeiro filme, teríamos provavelmente um filme duvidoso (talvez até fascista, como muitos injustamente o acusaram). Aqui, no entanto, o tom assertivo só reitera verbalmente e, sobretudo, didatiza, o mundo imagético e o tema.
Padilha e Mantovani transformaram Nascimento em herói, mas disseram não considerá-lo tal, talvez porque a gênese do personagem não tenha sido essa. Do Nascimento atual espera-se a determinação implacável, a postura de justiceiro, mas pouco do que ele denuncia se faz ouvir (seja corrupção dentro do próprio BOPE, dentro do governo - o sobrevôo em Brasília, - seja o jogo de interesses no meio jornalístico/midiático). O herói de Tropa de Elite 2 ficou aquém do (falso) herói precocemente proclamado pela mídia, aquele que Luciano Huck e as capas de revistas anunciaram como “herói nacional”, aquele que grita “pede pra sair” sem questionar os problemas do aparelho ao qual pertence, ao menos na cabeça do público. Esse imaginário em torno do personagem se transfere para o mundo real e, enquanto o espectador espera ver justiceiros determinados como o Capitão Nascimento, os policiais (do BOPE ou não) posam para as fotos da mídia tentando sê-lo. Esta por sua vez, intercala imagens da real invasão da favela, com outras tiradas do próprio filme, como se participacem de uma mesma realidade. São indicíos de que a verdadeira importância do segundo filme parece diminuída, sufocada pelo personagem, quando não são rebatidas, como fez um senhor no debate, que se revelou incomodado quando Padilha equiparou policiais, políticos corruptos e traficantes num mesmo patamar. Deve-se haver uma hierarquia, completou o homem. O filme parece se tornar menor do que o herói, que, por sua vez, acabou “clonado” e transferido para as ruas (e para as televisões, jornais, etc) como se todos fossem Capitão Nascimento, numa clara reverberação entre realidade e ficção. No entanto, torna-se óbvio que se a ficção influência a realidade, esta, por sua vez, vai de encontro ao filme refletindo o contexto social, cultural e histórico do país. E isso já justifica a existência e a importância do filme.

por ÁLVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

Nenhum comentário: