sábado, 27 de março de 2010

FRIDAY NIGHT LIGHTS

I was living in a devil town; I didn’t know it was a devil town”. Tais versos pertencem à “Devil Town”, canção que embala o teaser promocional da terceira temporada de “Friday Night Lights”. Não, a série não se passa em um subúrbio sucetível à psicopatas como a Wisteria Lane de “Desperate Housewives”, nem tenta desvendar a hipocrisia por trás do refinamento de Beverly Hills, Orange County, ou mesmo do balado Upper East Side de NY, cenário de “Gossip Girl”, outra série teen contemporânea, gênero no qual “Friday Night Lights” pode se encaixar com ressalvas. Simplesmente porque a conservadora Dillon, cidadezinha fictícia no interior do Texas, é justamente o oposto do que se tentou cercar a adolescência televisiva nos últimos anos. Trata-se de uma cidade pacata, sem grandes badalações, onde o único passatempo é, a princípio, uma verdadeira paixão.
Em Dillon, o futebol high-school das sextas à noite é um verdadeiro evento; seus jogadores, jovens entre os 15 e 18 anos, grandes astros. A adolescência não é, portanto, uma etapa a ser vivida entre a impulsividade e o limite, como retrata a já citada “Gossip Girl”, certamente influênciada pela inglesa “Skins”, a mais nova precursora em tratar o mundo-cão juvenil. Para os garotos do Dillon’s Panthers é algo mais simples: trata-se apenas do futebol e de como essa paixão os impulsiona a um futuro distante de sua limitada cidade natal. É justamente aí que as coisas se complicam: a paixão transforma-se de um momento a outro em obsessão; a série confronta seus próprios personagens com uma nova realidade que sabota todos o percurso realizado por estes sem chances para uma total restauração das coisas, abrindo possibilidade apenas para uma adaptação. Assim se completa a storyline do quarterback Jason Street (Scott Porter), que após acidentar-se em campo, se vê obrigado a seguir na carreira de treinador para continuar lidando com o esporte que tanto ama. Ou a de Smash William (Gaius Charles,) garoto que em todo seu percurso tenta driblar o preconceito racial através do convencimento e da falsa auto-estima, e que acaba tendo seu futuro afetado justamente quando reage agressivamente a uma provocação racista.
O acidente com Street logo no primeiro episódio da série, abre espaço para a ascensão de outro personagem, Matt Saracen (Zack Gilford), garoto introspectivo que fora abandonado pela mãe, e que cujo pai está a serviço no Iraque, obrigando-o assim a viver sob a tutela da avó, que apresenta os primeiros sinais alzheimer. Saracen, que nunca havia sequer saído do banco de reservas, não só tem a oportunidade de se tornar estrela do time, como encontra no técnico Eric Taylor (Kyle Chandler) uma espécie de figura paterna. Mas até mesmo para alguém como Saracen, que não tem muito o que perder, os ventos podem mudar. Em contrapartida, vem Tim Riggins (Taylor Kitcsh), galã bad boy, mas com caráter, cuja sorte lhe sorriu algumas vezes, mas que sempre fora por ele dispensada, e que chega a um momento de total letargia ao perceber que a high-school se foi e com ela a posição de astro do Dillon’s Panther.
Essa breve descrição da trajetória de alguns dos personagens já delineia muito sobre “Friday Night Lights”. Mais do que uma série adolescente, trata-se de uma história em que jovens são catapultados ao estrelato com a mesma rapidez com que despencam dessa posição e em que o happy end nunca é pleno (tal qual em Juno, filme recente que aborda o universo adolescente através desse ideia ácida de que a felicidade nunca é completa, algo sempre fica pelo caminho). Mas trata-se, sobretudo, de uma história em que uma paixão (no caso aqui, por um esporte) pode tomar caminhos completamente distintos, afinal, de nada adianta a dedicação do coach Taylor ao time, ou de sua esposa, Tammy Taylor (Connie Britton) ao colégio em que ocupa o cargo de diretora, quando o sentimento da pequena Dillon em relação ao esporte, parece ultrapassar uma fronteira perigosa, desafiando questões éticas e morais, que dizem respeito, inclusive, à educação da juventude vista nesse cenário.
Assim, encontramos uma Dillon dividida na quarta e atual temporada da série. De um lado West Dillon, que guarda apenas boas recordações de um passado recente, enquanto seus antigos heróis (Riggins e Saracen) vagam letárgicos e inertes pela cidade. Do outro, East Dillon, área mais pobre que vê sua escola ser reativada, assim com o antigo time, agora liderado por Eric Taylor, que fora expulso dos Panthers por uma questão de interesses dos “figurões” da cidade. A paixão pelo antigo time se tornara um câncer, como bem definiu em episódio recente um dos personagens. Resta agora reerguer o então inativo Lions, ainda que problemas como a falta de motivação, as dificuldades financeiras e educacionais e a criminalidade sejam empecilhos presentes à essa tarefa. A ideia da cooperação, do trabalho em equipe, estão presentes, como sempre estiveram de forma muito positiva na série, ainda que, individualmente, cada personagem tenha se deparado com situações incontornáveis, tendo assim que abortar planos e sonhos. Há aí um certo sentimento de pessimismo, que não deixa de conferir realidade à trama. Bem verdade, assistimos West Dillon se afundar em meio ao orgulho e à obsessão, enquanto East Dillon se debate para ressurgir enquanto tudo corrobora contra. O futebol, esporte símbolo dos Estados Unidos, serve de cerne para esta que não deixa de ser uma interessante crônica americana, num microcosmo que pouco tem da riqueza e exuberância que estamos acostumados a ver/acreditar. A série escancara assim os problemas sócio-econômicos (a crise imobiliária chega a ser abordada em determinada storyline), os fanatismos e as limitações de uma cidadezinha pacata e conservadora. Têm-se aí um olhar reverso e curioso ao american way of life.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

NINE

Um abismo separa Chicago, filme de estréia de Rob Marshall, de Nine, mais recente trabalho do diretor. O irônico é que a distância entre os filmes está justamente no elemento comum a ambos: o espaço palco. Em Chicago o palco é parte da diegese fílmica; não há fronteiras entre trama e espetáculo, as partes coexistem e se confundem em um único filme. Em Nine isso não acontece: o palco é simples espetáculo filmado; o filme, mera desculpa para que desemboquemos nesse espetáculo.
Perdem-se as boas atuações do elenco estelar. Daniel Day-Lewis, Penélope Cruz, Judi Dench, Kate Hudson e Marion Contillard (provavelmente a melhor coisa do filme!) parecem se divertir em seus personagens. Pena serem, tal como a “parte filme”, meras desculpas para que adentremos ao show, que é o que interessa ao diretor. O próprio Marshall devia estar passando por uma crise parecida a do protagonista Guido Contini, e por isso mesmo investiu na área em que se sente mais confortável. Cria da Broadway, Marshall faz números musicais, no mínimo, competentes. O talento que exibe em coreografar seus atores-dançarinos, porém, não atinge as câmeras: se a decupagem do “filme” é simplória, a do “espetáculo” é quase nula. O palco (de novo o palco) acaba sendo aquilo que há de mais italiano nessa re-releitura do clássico de Fellini (deveria ser Sophia Loren, mas ela é mera figuração de luxo com um papel meramente burocrário – a matriarca italiana – assim como ocorre com Nicole Kidman).
Dizer que permanecemos imóveis na platéia é certo exagero, mas em momento algum penetramos o espaço ou somos sequer dotados de um olhar cinematográfico. No entanto, mais do que essa incompetência que parte da planificação e atinge a imagem, a maior falha de Marshall consiste em sua incapacidade de concatenar as duas partes de seu objeto. Se em Shine a light, Scorsese transformou um show dos Rolling Stones em puro Cinema, em Nine o Cinema é submisso ao simples registro imagético da dança, da música, do espetáculo. O pecado não está, portanto, no novo olhar ao clássico, está na falta de respeito para com o próprio Cinema.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

GUERRA AO TERROR

"Ora, ora, o que temos aqui?", questiona o sargento Sanborn ao encontrar os pertences do colega James Williams. "A caixa está cheia de coisas que quase me mataram", o sargento Williams responde de pronto. "E isto?", pergunta um terceiro soldado ao encontrar uma aliança presa a um cordão. "Minha aliança de casamento. É como eu disse", pontua Williams.
O diálogo acima é, a princípio, carregado de uma aparente banalidade presente numa conversa entre amigos, aqui num raro momento de descontração, mas é também a mais pura realidade no que diz respeito a Williams (Jeremy Renner, indicado ao Oscar de melhor ator), experiente soldado a serviço no Iraque, que se sente desconfortável fora do ambiente bélico, algo que fica ainda mais claro quando o reencontramos completamente deslocado em meio às prateleiras de um supermercado, no desfecho de Guerra ao Terror, momento de ruptura para o filme. A fotografia, antes quente, torna-se fria e pálida, a câmera aquieta e dá preferência aos planos abertos, sendo que outrora, fazia-se sempre rente aos personagens. A rotina do americano comum, a posição de chefe de família, não interessam ao personagem (ao menos, não mais), e isso está presente na imagem. Williams, afinal, já não consegue manter-se longe do vício que persegue filme afora. Ele deseja retornar ao Iraque, deseja, sobretudo, sentir de novo tensão e adrenalina proporcionados por uma guerra sobre a qual ele pouco questiona ou emite opinião. O que importa é o conflito e ponto. Williams tornou-se, portanto, engrenagem.
Essa busca pela adrenalina extravasa o filme de Kathryn Bigelow através da decupagem. A cada nova missão (as missões consistem em encontrar e desarmar explosivos ocultos), temos dois opostos: de um lado, os soldados norte-americanos; do outro, civis que compõem o cenário local e que não hesitam em questionar de forma dúbia os estrangeiros ("Where are you from?", eles perguntam como se tentassem lembrar aos americanos sua posição de invasores). Bigelow filma a cidade como um território amplo e aberto, onde os dois lados se misturam num espaço que é um verdadeiro campo minado. Os explosivos estão no meio da rua, em latas de lixo e carros abandonados. Os terroristas em meio aos civis. Fosse uma decupagem clássica de ação ou suspense, veríamos o soldado correndo contra o tempo para desarmar a bomba. Em paralelo, veríamos aquele que está pronto a acioná-la, esguio, assistindo a operação oculto em algum canto. Em Guerra ao Terror, soldados e terroristas estão face a face, a dificuldade está em identificá-los em meio à aglomeração de pessoas que assiste atenta a cada operação. A qualquer momento, qualquer um em meio à multidão pode apanhar um celular ou acionar um dispositivo e mandar tudo pelos ares. Bigelow coloca os espectadores num posicionamento semelhante ao dos soldados, ou seja, não somos observadores privilegiados, temos o mesmo tempo de reação dos próprios protagonistas. Tensão, adrenalina e paranóia se fazem presentes a nós tanto quanto a eles.
A busca de Williams por sua "droga" (war is a drug é a frase que figura no pôster do filme) é tamanha que o encontro com uma bomba-cadáver, cujo corpo é de um garoto que lhe vendia DVDs, o faz procurar por justiça, tornando-se uma desculpa para que o sargento se coloque diante de uma missão extra. Não que Williams se importasse realmente com o garoto. Na verdade, a ele só importa o estado constante de risco, que é o que lhe sacia, sempre que tenha completo controle da situação. Caso contrário, há a falha. Com poucos minutos para desativar uma bomba acoplada ao corpo de um homem em total desespero, e com o relógio correndo em contagem decrescente, William insiste até o instante em que sabe não arriscar própria segurança. Depois disso, corre em direção oposta, deixando o outro explodir a suas costas. No homem transformado pela guerra (e é disso que o filme de Bigelow trata), encontra-se um resquício, ainda que mínimo, de humanidade, distinguindo-o assim de mero objeto bélico. Vestígio o suficiente para fazê-lo reconhecer a perda do controle, pressentir o perigo iminente e temer pela própria vida.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

UM OLHAR DO PARAÍSO

Em “Um olhar do Paraíso”, uma garota de 14 anos lida com o desejo de vingança que nutre por seu assassino enquanto narra o cotidiano de sua família após a perda, diretamente de uma espécie de paraíso em que se encontra. Em “Almas Gêmeas”, duas garotas criam um mundo imaginário e quando percebem que este é ameaçado, planejam um crime. É inegável que Peter Jackson retorna aos temas do filme dirigido por ele e protagonizado por Kate Winslet em 1994, neste “Um olhar do Paraíso”, havendo também uma semelhança de abordagem, sobretudo, na construção do universo fantasioso que surge dentro do filme.
Pois o paraíso aqui construído é parecido ao de outrora. É infantilizado, dotado de uma visão bastante pueril do imaginário que se tem do cenário (paisagens imensas, campos de trigo, árvores enormes, etc). Bem verdade, não raras as vezes, afloram sobre a tela paisagens típicas dos wallpapers do windows. Em “Almas Gêmeas” já era assim (claro, guardadas as devidas proporções dos efeitos visuais). O mundo concebido por Jackson é exagerado em sua atmosfera de sonho, beirando, muitas vezes, o kitsch. Não se pode dizer, no entanto, que tais mundos não são condizentes com as histórias que estão sendo contadas, e muito menos com suas protagonistas.
Se o paraíso de Susie Salmon (Saoirse Ronan) é um verdadeiro potencializar de tudo o que se espera de um paraíso, é porque a personagem exige essa demanda. É disso que Jackson quer tratar: da inocência, da pureza, da infância, da imaginação, algo que pode se quebrar de uma maneira atroz, como ocorre com a própria protagonista que deixa-se seduzir justamente por um encantamento, uma curiosidade pueril que tem pela oferta de seu assassino. Susie mergulha então em seu mundo escapista e encantado, muito embora se veja as voltas quando lembra que sua família permanece estagnada na tragédia, algo que, somado ao desejo de vingança, impede a garota de seguir adiante. Quando resolve finalmente encarar seus medos (o reencontro com o homem que lhe tirou a vida e a forma com que fora assassinada), Susie tem seu mundo transformado, mergulhando num ambiente sombrio, que tem seu auge na cena em que ela explora a casa de seu assassino, caindo a partir de cada cômodo em diferentes cenários em que outros como ela foram executados. Tal como acontecia em “Almas Gêmeas”: a medida em que sua amizade era ameaçada, o mundo imaginário de Pauline (Melanie Lynskey) e Julie (Kate Winslet) tornava-se mais sombrio e ameaçador.
Em meio ao mundo absurdo que materializa metaforicamente a dor vinda do mundo real, Jackson encontra espaço para o suspense. A irmã mais jovem da falecida Susie, resolve reunir provas para que a culpa recaia sobre o assassino. A montagem paralela nos fornece a garota vasculhando a casa e o homem retornando ao mesmo local. A garota encontra um livro de pistas e passa a folheá-lo página por página, como se necessitasse de cada uma delas, de cada detalhe, para chegar à última, em que o crime é confirmado. Vítima e algoz já estão dentro da casa. A mise èn scéne dilata a ação. Quando a vítima faz um mínimo ruído, o homem avança escada acima, furioso, com os dentes crispados, a câmera de frente para ele, acompanhando o bote de perto. A cena não só constrói a tensão, como exacerba o personagem vivido por Stanley Tucci: ele é simplesmente o maníaco, o algoz, não tem profundidade alguma. Tucci é hipnótico em simplesmente encarnar uma figura plana: o mal. Tal como Wahlberg e Ronan: ele fazendo um pai que na dor encontra a letargia; ela, a garota assassinada, personagem mais complexa do filme justamente por exacerbar sentimentos conflitantes (o seguir adiante X o concluir do passado/ a inocência da infância X a impulsividade da adolescência).
Perdem-se Rachel Weisz e Susan Sarandon, cujas personagens nada vão além da superficialidade. Pode-se até tentar defendê-las alegando que essa busca por uma tridimensionalidade dos personagens não era intuito do diretor e que o foco talvez fosse o aflorar de um mundo alicerçado em questões interminadas, mal resolvidas por parte daquela que partiu. Mas há também a possibilidade de tudo não passar de um grande equívoco, já que a mistura entre suspense, drama e fantasia é de uma surpresa proporcional à incoerência. No entanto, uma coisa é certa sobre este “Um Olhar do Paraíso”: não foi à toa, que público e crítica torceram o nariz para o novo filme de Peter Jackson. Ele com certeza criou um objeto estranho.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ