sábado, 27 de setembro de 2008

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Em ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, há algo tão voraz quanto o “mal branco” que afeta seus personagens: o incômodo contraponto entre a degradação causada pela epidemia e a aparente apatia de seus infectados. Essa falsa apatia habita CEGUEIRA e ela desaparece apenas para dar lugar a alguma sensação ruim. No filme de Fernando Meirelles a aparente ausência de sentimentos se dá por uma opacidade que impede que o espectador penetre a fundo na obra ou acesse alguma emoção que seja boa e verdadeira, e se alterna à podridão que exala daquela sociedade ali enclausurada, essa sim, forte o bastante a ponto de ultrapassar a tela. No entanto, o filme tem sim seus sentimentos. Eles apenas não extravasam, não palpitam, estão contidos dentro de uma obra cuja brancura asséptica e a visão nebulosa dominam inúmeras camadas, num filme que não faz o mínimo esforço e sequer tem o intuito de aproximar personagem e espectador. CEGUEIRA é um filme sobre o olhar, ou simplesmente sobre a falta dele, o que contribui para que pequenos resquícios de humanidade jamais cheguem aos olhos do público, e apenas grande atos sejam vistos, como os da esposa devotada ou os do único cego verdadeiro. Ambos são os olhos dos demais doentes. Ela se torna logo uma escrava do olhar, enquanto ele vale-se deste para ganhar algo em benefício próprio. Tratam-se de ações de moral oposta, mas nem por isso menores. O filme estabelece aí uma segunda discussão: trata-se de uma obra de grandes contrastes.
Na Camarata 1 do sanatório em que os infectados são mantidos em quarentena, o médico assume a posição de um líder democrático. Em contraponto a ele, o Rei da Camarata 3, se auto-denomina como responsável por um governo que se revelará tirano e criminoso com o desenrolar da história. Embora haja uma tentativa de estabelecimento de regras, a sociedade vista em CEGUEIRA é parecida àquela de O NEVOEIRO: não respeita leis e não raramente age por instintos. Isso ocorre sempre que há um coletivo, geralmente responsável pelas maiores explosões dentro do filme. Figuras isoladas não mantém a mesma força já que, embora mantenham seus intintos, transitam geralmente vagando pelo filme, conformadas com o mal que as aflige, como se este fosse uma punição irrevogável. Mas, sobretudo, não têm perspectivas futuras.
CEGUEIRA parte da apatia individual e vai a um coletivo show de horrores. Show este ambientado num cenário dominado pela brancura das paredes e das cegueiras, pela assepsia da fotografia, que por sua vez contrasta ao universo degradado que toma conta do sanatório, trazido através de corpos e excrementos pela direção de arte. O filme não se limita à disparidade entre líderes e messias, nem ao contraponto entre áreas que compõem a obra. Faz com que o público experimente em doses homeopáticas a cegueira dos personagens, fazendo com que o branco possua a tela. Não satisfeito a essa primeira experiência, vai além: leva o espectador a experimentar uma cegueira própria, do mundo real. Na cena, a esposa vivida por Juliane Moore adentra um depósito de supermercado. Não há luz e o que se vê durante segundos é a escuridão total. O cinema é enfim privado de sua matéria-prima: a imagem. Um novo contraste é feito entre distintas privações do olhar.
Não raramente ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA faz com que essa privação do olhar assuma a tela. Às vezes, ela vem em forma de flashs de brancura. Outras, apenas através de vultos e formas. Há ainda a utilização de cortinas e elipses que fragmentam e parcializam ainda mais o filme, algo que potencializa uma obra que trata da parcialização do olhar. Difícil de digerir, CEGUEIRA compartilha da mais fascinante característica do livro no qual fora baseado: a capacidade de tornar crescente a angústia do espectador. Por fim, após um desenrolar denso e agonizante, num filme onde a prodridão encontra na assepsia uma aliada na tarefa de perturbar e inquietar, ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA nega tudo o que fora antes visto em sua última cena. Nela, um personagem, o primeiro dos cegos, recupera a visão. Nela o filme explode. A câmera que até então mantinha-se distante, dança pelo cenário e aproxima-se sem temor de cada personagem. É a primeira vez que bons sentimentos transbordam a tela. Não que eles não existissem, mas estavam latentes, quase cegos. Um último contraste ocorre: aquele que contrapõe os últimos planos a todo o restante da obra.


por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

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