domingo, 15 de novembro de 2009

BASTARDOS INGLÓRIOS

Durante toda a sessão de Bastardos Inglórios, outro filme fez-se recorrente em minha memória. Não, não me refiro às já bastante comentadas referências que Quentin Tarantino faz a Serge Leone, nem a Brian De Palma dentro de seu novo filme, mas sim a uma obra dirigida por Alfred Hitchcock, estrelada por Ryan Milland e Grace Kelly em meados da década de 50. Enquanto via Bastardos Inglórios, Disque M para Matar não me saia da cabeça.
Era, no mínimo, intrigante essa associação quase que estapafúrdia entre dois filmes que aparentemente pouco têm a ver um com o outro, realizados por cineastas um tanto quanto díspares, sendo Hitchcock um mestre do ilusionismo clássico, enquanto Tarantino, um comentador irônico e nada discreto do próprio Cinema. Afinal, em que ponto se dava a ligação entre essas obras? Onde, como, quando ou por que o filme de guerra de Tarantino se tangenciava (na minha cabeça) ao suspense de assassinato de Hitchcock? Tais questões só me foram respondidas quando deixei de pensar em Bastardos Inglórios como um todo, para enfim analisar a narrativa a partir de sua gênese, tal como ela nos fora apresentada desde o princípio: de forma capitular, episódica.
Já há alguns anos não revejo Disque M para Matar, mas vamos lá: tínhamos ali um encontro entre duas partes (antigos colegas de escola) e a partir desse encontro um jogo, uma chantagem, se desenvolvia a partir de uma intriga, tudo fortemente ligado ao diálogo e delimitado ao espaço cênico da sala de estar de um apartamento. Pensemos agora no prólogo de Bastardos Inglórios, na cena referencial a Leone: do horizonte, surge o inimigo que é contraposto à família em sua aparente normalidade. O inimigo é convidado a adentrar a casa e um falso jogo de cordialidade entre os lados é estabelecido. Desse encontro surge a intriga e ambos os lados tentam provar suas “teses”, criando-se assim um sentimento de dubiedade no espectador: afinal, quem é a figura mais forte do embate, o fazendeiro LaPadite ou o Coronel Hans Landa? Tal jogo é dilatado até o limite em que um dessas duas figuras cede a pressão psicológica e “cai”: é a deixa para que a violência entre em cena e encerre o capítulo.
Esse esquema se repete durante o filme, e se faz presente tanto no momento em que Shoshanna é colocada frente a frente com o próprio Landa, o executor de sua família, quanto na longuíssima sequência ambientada dentro de um bar. Em ambas as cenas temos uma repetição da situação hitchcockiana de Disque M para Matar: dois lados, uma intriga, a suspensão, a força do diálogo, e, por fim, o espaço, como elemento delimitador. Nesta última cena, no entanto, tudo isso é potencializado, e se Hitchcock declarara que seria capaz de fazer um filme inteiro dentro do espaço ínfimo de uma cabine telefônica, Tarantino faz algo assim ao exercitar sua mise en scène dentro de um espaço limitado, povoado por um número razoável de personagens, dividido em pelo menos três diferentes focos de ação (as duas mesas de clientes e o espaço do caixa). É, provavelmente, o momento síntese de Bastardos Inglórios: um filme que, assim como toda a obra de Tarantino, está extremamente calcado na imagem. Não só na imagem, mas no próprio Cinema (não à toa, o Cinema torna-se a principal arma na vingança de Shoshanna), e como o Cinema há muito deixou de ser só imagem, encontramos aqui o som. O palavrório excessivo aqui não é muleta, ele coexiste com a imagem e encontra uma força própria, que corrobora na dilatação, na suspensão, no fortalecimento da intriga e dos turn-points que fazem parte do suspense. Tal como fazia Hitchcock em Disque M para Matar (e em tantas outras obras). Álias, vale a ressalva: há uma diferença básica entre os dois filmes. Hitchcock considerava Disque M para Matar um filme menor. Aqui, Tarantino pontua, com razão, pela boca do personagem de Brad Pitt: Bastardos Inglórios é definitivamente de sua obra-prima.

por ALVARO ZEINI CRUZ

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