domingo, 12 de julho de 2009

NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA

“Quando me propus a fazer o meu próximo filme, queria fazer um filme com gente de verdade – uma comédia, mas com gente de verdade. Queria fazer um filme em que eu represente a mim mesmo, a Diane Keaton faça ela mesma e a gente more em Nova York, com os conflitos reais do nosso relacionamento, em vez de uma ideia muito extravagante”.1

Tal fragmento é retirado de uma entrevista concedida por Woody Allen em 1974, três anos antes da estreia de Annie Hall (aqui Noivo neurótico, noiva nervosa). Tratava-se de uma antecipação do próprio filme: uma comédia urbana estrelada por ele e Diane Keaton (na época sua esposa), que trazia não apenas características marcantes de sua carreira (como o humor através de esquetes), como inúmeras referências de teor auto-biográfico. Muito do que se vê em Alvy Singer (o personagem) é deslocado do próprio Allen e tudo é exposto na obra: a paixão de dele por Fellini, sua preferência pelo movimento da metrópole à tranquilidade bucólica, sua carreira como comediante, que começou no stand-up comedy, o infortúnio de ser reconhecido nas ruas (num exemplo de esquete que pouco tem a acrescentar narrativamente a não ser o humor), sua expulsão da New York University, e o próprio relacionamento com Keaton, cujo nome verdadeiro é Diane Hall e o apelido Annie, sendo ela assim o verdadeiro fator desencadeante do filme.
A busca pelo real, por “gente de verdade” está visivelmente inserida em Annie Hall. Segundo Allen, a comédia “exige a realidade”. Isso afeta diretamente sua decupagem. Tomemos uma determinada cena como exemplo: o quadro inicia com Allen e outra personagem se beijando na cama. Desenvolve-se um diálogo a partir daí. Allen se levanta e dá uma volta pelo cômodo, acompanhado pela câmera, deixando a segunda personagem fora de quadro. Ele anda até determinado ponto, para, o diálogo tem continuidade (ela em voz off), ele volta a andar, ela vem de encontro a ele no quadro. A partir daí ela “puxa” a câmera de volta à cama. O quadro é semelhante ao inicial. Allen volta a entrar em quadro, o diálogo termina e a cena se encerra.


Fosse a cena acima decupada de forma tradicional, a utilização de plano e contra-plano seria inevitável: a câmera acompanharia Allen até sua primeira parada e dali iniciaria a clássica montagem de planos entre os dois personagens durante o diálogo. Mas a busca pelo real faz com que o diretor evite o corte e dilate a ação. Segundo ele próprio, numa comédia “...se corta minimamente para não perder o ritmo, sobre o qual tudo repousa”. Mais do que utilizar um conceito rigoroso que prima pela busca por uma realidade, por um não-artifício, o que de certa forma corrobora para uma transparência fílmica (que por sua vez é rompida pelo uso da quebra da quarta parede, por exemplo), Allen propõe que a comédia necessita, além de timing e de uma ecônomia da montagem, também de um espaço cênico para se desenvolver. É, portanto, interessante notar que em sua carreira mais recente, calcada no drama, a partir de Match Point, ele não só deixa de lado essa decupagem/montagem dilatada, como revela-se ainda econômico não na quantidade, mas sim no tamanho dos planos, criando imagens que contenham estritamente aquilo que é essencial para a trama.
Por fim, a realidade não interfere apenas na linguagem e estética do cinema de Woody Allen. Afeta, sobretudo, a construção de seu personagem. Afinal, não seria Alvy Singer apenas uma extensão e recorte do próprio Allen? Não seria esse personagem um interesse comum do diretor, capaz de suprir sua declarada limitação como ator, e que, sobretudo, tem fácil capacidade de deslocamento de uma obra a outra? Ele próprio responde:

“Só posso descrever esse personagem em termos do que conheço: contemporâneo, neurótico, mais orientado para a vida intelectual, perdedor, homenzinho, não lida bem com máquinas, deslocado do mundo – essa merda toda”.2

Intrínsico à cinematografia de Allen está um pessimismo, que se em Annie Hall permanece delimitado à um único personagem, é também exacerbado pelo próprio filme em Match Point, O Sonho de Cassandra e Crimes e Pecados (não à toa, todos calcados em Crime e Castigo, de Dostoiévski). Ao final de Noivo Neurótico, noiva nervosa, Alvy Singer acaba contraposto ao pseudo-otimismo da peça que está dirigindo: “Sabe como sempre tenta fazer tudo sair perfeito em arte, porque na vida real é difícil”.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Alvo,

Legal você retomar um filme antigo pra quebrar essa sequência do apanhado crítico dos lançamentos. Devo dizer que escolheu muito bem (e isso não pelo oscar que o filme recebeu da academia). Adoro o humor refinado, urbano e pessimista do Woody Allen. Apesar de autobiográfico, também me reconheço muito em Noivo neurótico, noiva nervosa (que deveria ganhar um premio da dublagem por melhor tradução nacional rs). Bacana suas considerações sobre as tomadas de filmagem também. O filme tem cenas antologicas, como a que mostra o pensamento dos personagens enquanto conversam, ou quando aparece o Marshall McLuhan na fila do cinema. Valeu recordar Alvo.

Um grande Abraço.