Nos créditos iniciais de “Godzilla”,
escritos diversos vão sendo velados por tarjas, deixando à vista apenas os
nomes da equipe. É o único momento do filme em que dados – ainda que
irrelevantes, afinal, só existem por conta do conceito dos créditos – são
camuflados. A partir daí, o filme dirigido por Gareth Edwards opera sob o
comando do desvelamento.
Esse
desvelar, no entanto, significa revelar sob uma pré-condição: há sempre limites
– do objeto revelado, do olhar de quem o vê, da janela de onde se olha. O
enquadramento cinematográfico delimita um recorte que expõe parte de uma
diegése, o que não significa que essa diegése se restrinja ao quadro. Há o
contracampo, o extraquadro. Há um mundo à espera de um movimento de câmera ou
de um corte, pronto a ser explorado. O cinema é uma arte de rearranjar
molduras; ou, por vezes, reconhecer que, por mais que elas possam ser reordenadas,
nem sempre isso basta.
“Godzilla”
se constrói através de janelas: a cientista vivida por Sally Hawkins está no
helicóptero; ao fundo, vê-se o céu. De repente, a aeronave inicia a descida e,
antes mesmo da personagem, vemos a imensa escavação onde fósseis foram
encontrados. É também através de uma janela, desta vez pequena a ponto de
restringir o rosto de Juliette Binoche, que se dá o momento em que sua
personagem pede para que o marido, interpretado por Bryan Cranston, cuide do
filho ainda pequeno (e há outra mãe que se despede através de janela num
segundo momento do filme). Anos mais tarde, o fracasso desse apelo é estampado
no rosto deste pai, e nos é antecipado pela janela que separa as salas de uma
delegacia. O rosto de Cranston, aliás, aparece adiante num reflexo grotesco
bastante representativo das perturbações daquele homem. A superfície desta
reflexão: mais uma vez, uma janela.
Mas,
ainda que seja um filme de desvelamento, “Godzilla” é, sobretudo, um filme de
monstros com dimensões colossais, cujos corpos nem sempre são possíveis de
serem contidos em uma moldura. Soma-se a isso o fato de que os “Mutos”, as
outras criaturas que habitam a trama, colocam em colapso o mundo com o qual nos
acostumamos ao desestabilizar tudo o que é digital (e o embate entre digital e
analógico já havia sido tema recentemente em “Círculo de Fogo”, filme de
monstros de Guillermo de Del Toro). Ou seja, tem-se um filme em que tudo está
exposto, revelado, sem que, no entanto, o olhar seja uma experiência garantida,
já que as janelas pelas quais vemos são muitas vezes ineptas, enquanto os
cenários, corpos e objetos, além de mergulhados na escuridão, parecem se fundir
numa massa homogênea e indistinguível, como quando um edifício tomba se incrustando
ao corpo do lagarto gigante. Sob a luz do dia, as janelas laterais do ônibus
escolar são suficientes apenas para se ter um vislumbre das costas de Godzilla;
à noite, o sinalizador de luz corta a escuridão até revelar uma mínima parte
daquele gigante incontido que avança sobre a cidade. Num filme de imagens
escuras e enevoadas, o ápice se dá quando o monstro protagonista revela já lá pelas
tantas, um poder extraordinário: o de ele próprio emitir luz.
No
“Godzilla” de Edwards, esse mundo de janelas (de ônibus e metrôs à televisões e
celulares) em que vivemos, entra em falência, e nada é mais contundente ao
demonstrar isso do que duas cenas que são montadas em sequência: na primeira,
tem-se o início da batalha entre o monstro-título e um dos Mutos num aeroporto
– e a câmera se põe interna no saguão envidraçado, de onde os passageiros
assistem a batalha que se estende naquela janela análoga a uma tela de cinema. Trata-se
de uma “tela” ineficaz no sentido de conter os corpos, já que, por maior que
seja, dá conta apenas dos pés de Godzilla. Contudo, é eficiente quando se trata
de comover, de chamar a atenção para uma imagem – e o pânico dos passageiros diante
desta imagem é prova disso. A cena muda e a batalha tem continuidade em outra
janela: o garoto assiste tudo pela televisão e tenta, em vão, chamar a atenção
da mãe, que, entre os afazeres da casa, mal nota o que acontece. É o mau desta
janela: na cena vista pelo menino, ela até dá conta dos corpos, da luta, mas por
ser lugar de um fluxo de imagens tão ordinárias, acaba não sendo vista quando
exibe algo que compõe uma esfera cada vez mais módica – a das imagens
extraordinárias.
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