domingo, 6 de julho de 2014

GODZILLA PELA JANELA


Nos créditos iniciais de “Godzilla”, escritos diversos vão sendo velados por tarjas, deixando à vista apenas os nomes da equipe. É o único momento do filme em que dados – ainda que irrelevantes, afinal, só existem por conta do conceito dos créditos – são camuflados. A partir daí, o filme dirigido por Gareth Edwards opera sob o comando do desvelamento.

Esse desvelar, no entanto, significa revelar sob uma pré-condição: há sempre limites – do objeto revelado, do olhar de quem o vê, da janela de onde se olha. O enquadramento cinematográfico delimita um recorte que expõe parte de uma diegése, o que não significa que essa diegése se restrinja ao quadro. Há o contracampo, o extraquadro. Há um mundo à espera de um movimento de câmera ou de um corte, pronto a ser explorado. O cinema é uma arte de rearranjar molduras; ou, por vezes, reconhecer que, por mais que elas possam ser reordenadas, nem sempre isso basta.

“Godzilla” se constrói através de janelas: a cientista vivida por Sally Hawkins está no helicóptero; ao fundo, vê-se o céu. De repente, a aeronave inicia a descida e, antes mesmo da personagem, vemos a imensa escavação onde fósseis foram encontrados. É também através de uma janela, desta vez pequena a ponto de restringir o rosto de Juliette Binoche, que se dá o momento em que sua personagem pede para que o marido, interpretado por Bryan Cranston, cuide do filho ainda pequeno (e há outra mãe que se despede através de janela num segundo momento do filme). Anos mais tarde, o fracasso desse apelo é estampado no rosto deste pai, e nos é antecipado pela janela que separa as salas de uma delegacia. O rosto de Cranston, aliás, aparece adiante num reflexo grotesco bastante representativo das perturbações daquele homem. A superfície desta reflexão: mais uma vez, uma janela.

Mas, ainda que seja um filme de desvelamento, “Godzilla” é, sobretudo, um filme de monstros com dimensões colossais, cujos corpos nem sempre são possíveis de serem contidos em uma moldura. Soma-se a isso o fato de que os “Mutos”, as outras criaturas que habitam a trama, colocam em colapso o mundo com o qual nos acostumamos ao desestabilizar tudo o que é digital (e o embate entre digital e analógico já havia sido tema recentemente em “Círculo de Fogo”, filme de monstros de Guillermo de Del Toro). Ou seja, tem-se um filme em que tudo está exposto, revelado, sem que, no entanto, o olhar seja uma experiência garantida, já que as janelas pelas quais vemos são muitas vezes ineptas, enquanto os cenários, corpos e objetos, além de mergulhados na escuridão, parecem se fundir numa massa homogênea e indistinguível, como quando um edifício tomba se incrustando ao corpo do lagarto gigante. Sob a luz do dia, as janelas laterais do ônibus escolar são suficientes apenas para se ter um vislumbre das costas de Godzilla; à noite, o sinalizador de luz corta a escuridão até revelar uma mínima parte daquele gigante incontido que avança sobre a cidade. Num filme de imagens escuras e enevoadas, o ápice se dá quando o monstro protagonista revela já lá pelas tantas, um poder extraordinário: o de ele próprio emitir luz.

No “Godzilla” de Edwards, esse mundo de janelas (de ônibus e metrôs à televisões e celulares) em que vivemos, entra em falência, e nada é mais contundente ao demonstrar isso do que duas cenas que são montadas em sequência: na primeira, tem-se o início da batalha entre o monstro-título e um dos Mutos num aeroporto – e a câmera se põe interna no saguão envidraçado, de onde os passageiros assistem a batalha que se estende naquela janela análoga a uma tela de cinema. Trata-se de uma “tela” ineficaz no sentido de conter os corpos, já que, por maior que seja, dá conta apenas dos pés de Godzilla. Contudo, é eficiente quando se trata de comover, de chamar a atenção para uma imagem – e o pânico dos passageiros diante desta imagem é prova disso. A cena muda e a batalha tem continuidade em outra janela: o garoto assiste tudo pela televisão e tenta, em vão, chamar a atenção da mãe, que, entre os afazeres da casa, mal nota o que acontece. É o mau desta janela: na cena vista pelo menino, ela até dá conta dos corpos, da luta, mas por ser lugar de um fluxo de imagens tão ordinárias, acaba não sendo vista quando exibe algo que compõe uma esfera cada vez mais módica – a das imagens extraordinárias. 

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