segunda-feira, 19 de outubro de 2009

AMANTES

A névoa delimita o espaço: pouco se vislumbra do horizonte nova yorkino do alto da laje do prédio. O ambiente corrobora para uma opressão dos personagens, algo que será potencializado pela mise en scène, pelos corpos que se contrapõem. Leonard (Joaquim Phoenix) deixa o papel de títere que costumara ocupar sempre que estava com Michelle (Gwyneth Paltrow), para, enfim, se tornar controlador da situação. Ele a coloca literalmente contra a parede. Ela, que até então o usara, e que vê agora seu mundo desabar, olha por um rápido instante para a câmera, como se pedisse ajuda ou uma interferência qualquer, afinal ou se entrega àquele que ela mesma chamara de irmão, ou corre o risco de perder o único porto seguro que lhe resta num momento difícil. Ele se declara; ela vendo não ter saída, permite-se ser beijada. O sexo ocorre com ela ali, encurralada, prensada na parede, enquanto ele vê na fragilidade dela a situação propícia para a mais desesperada das tentativas de conquistá-la. Trata-se de um encontro amoroso, mas poderia muito bem ser um jogo no exato momento do xeque-mate. Os papeis se invertem, e não à toa, o diretor James Gray se permite filmar o sexo num close focado no rosto dos atores-personagens, ou seja, naquilo que realmente interessa ao filme.
Pois Amantes é um filme que procura o rosto, a expressão, o gesto mínimo, a maneira como Leonard leva as mãos ao bolso no primeiro encontro que tem com Michelle, ou o olhar de uma excitação quase que pueril que ele dá à janela quando a luz vinda do apartamento de Michelle invade seu quarto. Leonard é, na verdade, um adolescente preso ao corpo de homem aparentemente amadurecido, mas que, no entanto, procura driblar o stabelishment que lhe tem sido imposto. Isso se reflete em suas ações, seja no voyeurismo infantil que tem pela paixão platônica, que faz com que ele se esgueire pelo quarto para não ser visto, ou na fuga sorrateira no meio da noite, simplesmente para que os pais não percebessem sua ausência. Michelle, mais do que a mulher amada, representa uma subversão, um retorno àquilo que ele tivera mas perdeu, uma libertação do zelo dos pais, uma forma de reencontrar-se com si próprio.
Mas Michelle é “cruel” e faz um jogo de morde e assopra. Não quer Leonard como homem, mas o quer como apoio; não quer o sexo, mas se entrega por saber o quão aquilo é importante para mantê-lo ao seu lado. Mais adiante, ela aparece à janela do apartamento, alta, distante, cercada por grades de ferro. Faz contato com Leonard e dali lhe mostra os seios. Não é boba, sabe que precisa instigar a paixão/obsessão do outro, mesmo permanecendo ali quase inatingível. Leonard se deixa levar, ao mesmo tempo em que mantém um relacionamento com Sandra (Vinessa Shaw), estabelecendo uma relação semelhante a que ele próprio mantém com Michelle, havendo aqui nova inversão dos papeis: se Michelle usa Leonard, ele faz o mesmo com Sandra, não por desgostar da moça, ou por tentar atingir a outra, mas por saber que entre ficar com o ideal (Michelle), o possível (Sandra), e o nada, é melhor manter uma carta na manga.
No fim, é isso que importa ao filme: escolhas possíveis, escolhas impostas, não escolhas. Em determinado momento, Leonard para de frente ao mar. Quando as ondas quebram aos seus pés, percebe que aquilo que tentara em outro momento da trama, já não lhe é mais opção. Recolhe seus restos e cacos e volta para casa. Talvez tenha crescido, talvez não. O fato é que se conformara, sua inquietude se aquietou, e dentre os poucos caminhos que lhe foram dados, escolheu o que era possível, mesmo que esse possível não signifique exatamente plenitude ou felicidade.
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ

À DERIVA

Filipa bóia na água: metade do corpo submersa (e é essa a parte que vemos a princípio), a outra metade exposta. É assim, dividida, submersa em um mundo, escancarada em outro, que Filipa nos é apresentada, e é assim que ela continuará durante a trama. Ora menina, ora mulher, Filipa pende entre os opostos conforme assiste o casamento dos pais naufragar.
Dizer que Filipa não age seria uma inverdade: ela age, porém suas ações pouco importam para o destino daquela relação. Assim, sempre que a garota propõe uma ação, uma provocação, a verdade lhe retorna com força arrebatadora e desconcertante. Ao revelar a traição do pai, ela imediatamente leva um golpe ainda maior da mãe; ao entregar-se pela primeira vez ao affair da amante do pai, por puro mimo, protesto, revanche, é acolhida por esse mesmo pai, que outrora ela rejeitara. Filipa age, mas não é personagem ativa. Continua ali, estagnada, impotente, à deriva diante do desmoronamento familiar. Heitor Dália, cuja marca maior era, até então, o cinismo evocado por personagens solitárias, coloca aqui não só um sentimento real, a sensação de impotência e desproteção daquela menina que cada vez mais não sabe a quem recorrer, como cria pela primeira vez um universo em que relações humanas reais são cabíveis ou possíveis, mesmo que delas nada surja de bom.
Se em Nina e O Cheiro do Ralo, a busca de Dália era por um não-realismo, um artificialismo acrescido de figuras misantrópicas, quase alegóricas, em À Deriva ele procura, pela primeira vez, o contrário, um naturalismo que corrobore com a verossimilhança das relações daquele universo calcado no ócio e no não digerir das mágoas. Essa realidade atinge Filipa, a protagonista, e afeta sua relação com os demais personagens. No entanto, não perpassa aos pais dela, e a relação entre Mathias (Vincent Cassel) e Clarice (Débora Bloch) acaba sofrendo ressonância do mesmo artificialismo recorrente nas figuras criadas em filmes passados do diretor, algo que, se era parte intrínseca dos demais universos, soa aqui como corpo estranho ao filme. Assim, os personagens tornam-se realistas sempre que contracenam com Filipa, mas não quando dialogam um com o outro, ou seja, não há a preocupação real com o que afeta aquele casamento, apenas com como essa crise da relação afetará a garota (ainda que a interpretação de Debora Bloch mereça aplausos justamente por não se entregar à excessos e clichês).
Utilizando uma câmera sempre rente aos personagens, e que, diversas vezes, de tão próxima cria uma série de fragmentos que formam um todo, À Deriva acaba, de alguma forma, dialogando com o recente Feliz Natal, de Selton Mello, e consequentemente com O Pântano, de Lucrécia Martel. Aqui, no entanto, o cinismo e uma possível descrença na humanidade acabam extrapolando de algum lugar além do filme. Não é predominante, mas acontece, está presente, tanto quanto o sentimento injetado através de Filipa, a intorpecência da garota que vê de perto o esfacelamento da própria família, esse sim um sentimento que habita diegése. A relação entre Mathias e Clarice é, portanto, tão essencial ao filme, por atingir à filha, quanto nociva. Tem-se aí um paradoxo.
por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ