quarta-feira, 17 de junho de 2009

VALSA COM O BASHIR

Em Diário dos Mortos, George A. Romero aborda a presença da câmera filmadora inserida dentro do filme como uma espécie de escudo (ou seria arma?) para aquele que encontra-se por trás dela, no caso, um personagem. A câmera é integrada à diegése fílmica de maneira semelhante a ocorrida em filmes como A Bruxa de Blair e os recentes Rec e Cloverfield, ou seja, encontra-se uma desculpa qualquer para torná-la elemento ativo no universo daqueles personagens. Em Valsa com o Bashir, num diálogo entre diretor e entrevistado, vemos o último impor incisivamente ao primeiro: “Você pode desenhar, mas não filme”. Mais tarde, uma terceira personagem rememora as palavras de um fotógrafo sobrevivente de uma batalha ocorrida no ano de 83: “ele pensou ‘Uau! Que cenas fantásticas: tiroteios, artilharia, feridos, gritos…’ Ele olhou para tudo como se tivesse uma câmera imaginária”. Esses dois momentos exacerbam muito do que há por trás de Valsa com o Bashir: mais do que o resgate de uma memória (que quando registrada se torna documentação), está um filme que, como o de Romero (que por sua vez aparenta um “simples” filme de zumbi), trata do poder imposto por uma imagem, seja para seu receptor ou manufactor, algo que revela-se determinante inclusive na opção por concebê-lo como um documentário em animação.
Adotando características ligadas ao documentário participativo, como o uso de entrevistas e o intervencionismo declarado do diretor, Valsa com o Bashir revela-se, já a princípio, também um documentário performático (segundo as classificações empregadas por Bill Nichols ao cinema documental), já que é uma busca pessoal do diretor Ari Folman que move a pesquisa. É conversando com um amigo, que Folman relaciona uma única imagem que tem em sua mente à possibilidade de ter sido conivente ao massacre ocorrido em 1982 durante a guerra entre Israel e Líbano, em que milhares de palestinos foram executados. Voltamos, portanto, ao cerne da questão: a procura de Folman inicia a partir desta única e misteriosa imagem, que perturba o diretor/protagonista e desencadeia essa revisita a um passado que, devido a um trauma, tornou-se para ele incógnito.
O uso da animação faz com que esse passado brutal assuma a tela de forma estilizada, talvez visualmente menos truculenta do que seria caso houvesse existido uma reencenação real dos episódios narrados (as histórias contadas pelos entrevistados não se delimitam ao texto e acabam também invadindo a tela), porém, ainda assim intensa, principalmente pelo fato do autor-protagonista permanecer longe do escudo-câmera. Ari Folman não só documenta um passado, como lança um olhar crítico ao cinema: se para Romero, em Diário dos Mortos, a câmera propicia uma pseudo impressão de poder e proteção, criando assim uma barreira entre os que estão diante e os que estão por trás dela, para Folman ela pode ser tão letal quanto as armas carregadas pelos soldados, sendo sua criação (a imagem) um elemento de inegável força. Força que aqui desencadeia um filme, assim como o encerra: ao final, a animação dá lugar à imagem real, à imagem da câmera, que surge voraz para pontuar o filme.

por ALVARO ANDRÉ ZEINI CRUZ (voltando a ativa por aqui!)